14.2.09

galak

...ela tinha de ir. Era a única certeza que possuía no momento – ou talvez em toda a vida. Alguns passos apenas e a calçada cinza à frente. Ela mesma toda cinza, necessidade de afirmação, como se o sol não estivesse ali, a seu dispor, mas ardente, a ardê-la toda. Cabeça aos pés, pele queimada, alma pálida. Nos olhos o vislumbrar do porvir. Excitação madura, ansiedade abafada. Tinha de manter a pose, o foco, afastar um cacho dos cabelos castanhos grudado no suor do rosto suado. Úmido. Lavado de sal. De sol. Ainda ardente, ainda mais. Porém o armazém ali na esquina. Logo logo lá estaria. Apertar o passo não, não precisa. Imprecisa tropeçou, trocando os pés. Quase foi ao chão; o poste perto, exato. Foi por pouco. Panfleto velho: cão desaparecido. Pensamentos fugazes. Não não. Enfoque. Distrações demais. Um segundo sequer é insuportável. Lá dentro pediu: ao mesmo velho de sempre, as mesmas moscas de sempre voejando, as mesmas coisas de sempre, sempre mesmas, sempre coisas, mesmas sempre, coisas sempre... Hein, aqui o dinheiro, fica com o troco. Distraída, saiu. O sol apagou. Apagada estava pra tudo, pra todos, antevendo sensações, qual falsa cigana, bruxa, morgana. Divertiu-se pensando nisso. Passou o pequeníssimo embrulho entre os dedos direitos da mão esquerda. Era a sua maçã envenenada, a sua poção, o elixir de suas angústias. O mundo parou de girar, chineses caíam do teto que não mais azul, mas cinza, tudo cinza, tudo pó. Só ela inteira; ela e o embrulho amarelo indo-embora nas mãos que também se iam com ela toda pra dentro de si mesma, pra um mesmo ponto, energia concentrada, solar lâmpada em formato de noz, apodrecendo de espera. O passo que deu explodiu tudo como o big ben, centelha divina, arranjo cretino que, interruptor, girou a chavinha do mundo que girou todo de novo feito carrossel doido de cavalos selvagens descontrolados potros violentos como o sol que arde. E nesse meio movimento ela se perde toda porque tudo todos foram e ela ficou sem saber por quê, apenas desejando imaginando suplicando a sensação quente derretida doce confortante do embrulho aberto. Olhos bem abertos. Não dela, mas dele. Tentando captar sua essência num sentimento qualquer de estudada satisfação, perscrutando de um gesto cotidiano a fugidia certeza que não mais possui – será que algum dia já a havia possuído? De qualquer forma a afirmação, ou pelo menos a possibilidade desta, ou daquela, ou nenhuma – que seja – se confirme.Mais um passo. Um único uno. Cadafalso. Sobressalto atrasado. Um momento apenas. Relógio atrasado, soluço abafado, choro engolido. Sem tempo pra dor. Cena de horror. Poesia romântica, escapando sempre. Gótica, pontiaguda, como facas de faquir penetrando a pela ardida da ardência do sol escorrendo rubra caudalosa no rio de sangue ensanguentando a cinza calçada, tornando-se rubra em si, saindo-se dela mesma, escoando toda bueiro afora. E o chocolate, branco, puro, imaculado, esmagado no chão. Cheiro doce de cacau queimado pela borracha do carrasco pneu, sorrindo-se de sua inanimada ignorância. E pra sempre a dúvida. A eterna dúvida. Pairando no ar, confundindo-se pura com as impurezas porcas no ar, desfazendo-se em sua própria incerteza de nunca ser. Dúvida...

- música do post: "quizás, quizás, quizás", Maysa

Um comentário:

Teresa disse...

ela é meio eu.
E eu sou meio ela.
Sei lá.

:p