4.4.09

náufragos d fuga

...de longe eu o podia avistar, a mesma posição de antes, sentado sozinho na beira da praia. Ali, onde é o limiar entre a precária concretude da areia molhada e as pequenas marolas salgadas, abraçava as pernas de encontro ao corpo, a cabeça apoiada nos joelhos – levemente pendida pro lado esquerdo –, e os olhos perdidos no horizonte. No que pensaria o rapaz, pergunto-me, enquanto continuo a observar-lhe os cabelos lisos revoltos pelo vento que assobia forte, único indício de som.
Nossa conversa é muda, minha e do rapaz. Comunicamo-nos como em torre de babel, cada qual com seu idioma, linguajares distantes, indo de encontro à arrebentação. Nem mesmo sei se de lá ele sabe que estou aqui, irrequieto, tentando contatos ininteligíveis. É fato que não o conheço, e talvez por isso qualquer coisa de pudor faça de meus passos âncoras que me impedem o movimento. Mas mesmo assim permaneço nesse jogo só meu, do qual as regras, tácitas, não parecem fazer o menor sentido.
De repente as coisas mudam, como mudam inerentemente todas as coisas do mundo. Nuvens espessas tomaram os céus, reivindicando um espaço cinza-plúmbeo cada vez mais delas. Choveria, muito em breve, porém o rapaz não se mexia, não se incomodava. Olhos tristes jogados ao mar, náufragos de fuga, transbordantes de súplicas que eu não compreendia. Seriam lágrimas aqueles dois brilhos secamente apagados pela ventania cada vez mais forte?
Finalmente abri a boca, queria chamá-lo, a maré subia rápido, em poucos minutos seria impossível permanecer ali, aqui. Nada disse, no entanto. Estranhamente havia me esquecido de como dizer, falar, sequer balbuciar qualquer ruído decodificável. Estático, o rapaz era envolto por marolas ondas que se transformavam em vagas, estrondando violência contra aquele ser desafiador no seu caminho.
As roupas encharcadas, o rapaz afundava no que agora não tinha mais limiar: era tudo água, mar, chuva, tempestade tropical. Eu também molhado, queria atingi-lo de qualquer modo, mas a indecisão fez com que minhas pernas ficassem presas na armadilha movediça que me tragava fundo. Sabia, então, que jamais conseguiria chegar ao rapaz, tirá-lo de sua inércia, mesmo que à força, e salvá-lo de si mesmo.
Lentamente, observei a progressão de sua desgraça, imóvel, irresoluto. O desespero revolvia meu estômago, enquanto o rapaz desaparecia sob aquele tapete salgado e furioso. Melancólico, não se importava, fazendo o que fosse para permanecer na mesma posição inicial, o rosto encharcado. O temporal agravou-se, e não o pude mais ver.
Quando dei por mim, encontrava-me novamente em meio à platitude da paisagem azulada, o sol brilhava forte, e as coisas todas ressoavam calmaria. Não sei quanto tempo se passou, mas a imagem dos cabelos do rapaz, boiando confusos sobre o corpo já submerso, entranhou-se-me na memória. Podia ter sido um sonho, disse, convulso, não reconhecendo minha própria voz...


para Jaya, que me fez encarar-me ao espelho
(novamente...)
- música do post: "you've got to hide your love", The Beatles

14 comentários:

Identidades Fragmentadas disse...

Sempre com post que buscam a indagação daqueles que estão a lê-lo

A Torre Mágica | Pedro Antônio de Oliveira disse...

Bonito texto!

Parabéns!

Abração.

Pedro Antônio - A TORRE MÁGICA - www.atorremagica.blogspot.com

Luan disse...

é vejo que você busca respostas?
algumas dificeis de se encontrar.

abraço alex.

mano maya kosha disse...

braços que se estendem nem sempre querem abraços, palavras que consolam, nem sempre tem o intuito, esbarramos em casas e casas, até acertar o nosso jogo.

Fee disse...

Os sonhos dizem muito sobre nós e, às vezes, gritam o que ignoramos quando acordados, isso por que a vida, a sua própria natureza, sempre dá um jeito de salvar-nos quando nos fazemos valer a pena.

Beeeijo

Mariana disse...

Primeiro: você arrasou no comentario do meu post!

Segundo: seu texto é reflexivo... faz a gente pensar... Eu gosto quando as pessoas conseguem isso!!

Parabens!

Beijos

J. MD disse...

Às vezes queria ser esse rapaz. SE misturar em meio a simplitude das ondas e renascer de alguma forma que fosse melhorar o que de fato sou ou poderia ser...
òtimo texto.
Gostei daqui!

Camila disse...

Alex...
Espero que tenha sido apenas um sonho e que encontre as respostas que busca.
O medo as vezes faz a gente ficar inerte por mais que se queira correr!

Adoro-te!
BeijOs

Ps. E um salve a Jaya!

Jaya Magalhães disse...

Antes de ler, coloquei o fone nos ouvidos e me permiti o som mais alto de "You've got to hide your love away", enquanto engolia tuas letras. Mistura de gostos, Alex. Enquanto John Lennon cantava, eu deixei cair um verso de água e sal nas palavras do teu texto.

Você falou de quando a gente é âncora, na vida. Do que passa, por inércia. Falou de jogos com regras tácitas, aos quais a gente por vezes se submete sem nem estar ciente.

O mar, da tua história, por todos os (d)efeitos, talvez seja o próprio amor. Acredito que o excesso sempre acabe nos submetendo ao náufrago. Muito (a)mar, não seria diferente. Não é.

Vida de sol, que de repente é chuva. Chuva que a cada vez que aparece, leva embora um jeito que a gente tinha, de sorrir.

Pegando a música como um retalho:

"How could she say to me: love will find a way?"

Eu digo, Alex: love will find a a way. Então, faço oposição ao refrão, querendo assim: don't hide your love away. [E que John e Paul me perdoem a intromissão - rs].

Náufrago de si mesmo é necessário. Palavra-espelho é essência. Puro reflexo do que a alma pede, querendo esvaziar-se.

Enfrentar-se cai bem, vez ou outra.

Beijos de carinho.

P.S.: Bom saber dos efeitos colaterais resultantes de uma noite onde luzes se acenderam, ao redor.

Luciana Brito disse...

Que texto... inquietou-me profundamente! Levou minha mente a formar toda a cena e a angústia tomou conta de mim, mas não a angústia do expectador, e sim a do jovem submerso!

Parte angustiada de nós que se entrega à revolta da vida, que se deixa submergir pelo desespero frente às adversidades, o peso de viver... Enxergar a morte de nós mesmos, lentamente levados é algo que dá o mesmo desespero do expectador desse teu texto (por isso sinto-me como ambos ao longo do texto).

Jaya te levou a encarar-se diante do espelho novamente e tu me levaste a encarar-me da mesma forma. Reflexo de mim nesse texto...


Ótimo texto Alex, muito bom e reflexivo.


Beijos =*

Bill Falcão disse...

Aaahhh, vi duas boas inspirações para este seu post, Alex: Beatles e Jaya!
Tinha que sair coisa boa!!
Aquele abraço!

R. disse...

Não consigo imaginar a sensação de querer ficar imóvel. Ainda menos resoluto, enquanto a água vem. Seriam os personagens reflexos dos autores ou é tudo fictício, peça da imaginação?

Abraço!

Rodrigues, K. disse...

Alex,

Quando comecei a ler-te, me imaginei sentada à praia, como muitas vezes já o fiz e me lembrei da sensação de estar ali, em paz. Continuando a leitura, me desesperei, tão presa fiquei a leitura, e me irritei com essa inércia, tive vontade de gritar, de mover. De fazer movimentar.

Ótimo texto, de guardar, pra reler mais uma vez.

Beijo.

Érica disse...

Amo Beatles!!!

Desculpe a ausência, maldita vida de proletário...rs

Mas muito bonito o texto, que bom que está de volta...ainda não sei quando volto ao crazy feelings, mas qq hora dessas estamos aí

Abraço

=D