29.2.08

descobrir-se

(...também poderia ser: do(s) dedo(s) preso(s) na dobradura da porta; ou: a verde queimadura solar que arde em girassol; ou ainda: descobriu-se num beijo traiçoeiro que lhe matou a carne e enlouqueceu-lhe o espírito...) Escolha, sabendo que tanto faz...

Entrou e fechou a porta atrás de si. Mas de certo modo era como se tivesse ficado do lado de fora. Não ele, como um todo. Talvez alguma parte sua. Assim como se houvesse um dos dedos seus entre as dobraduras. Nesse caso haveria dor. Não há nada, porém. Arrastou-se deixando as costas roçarem a parede até o ponto em que seu corpo formou um ângulo reto em relação ao chão. Reto: o ângulo; ele: obtuso. Abrindo-se em relação... Não saberia dizer a quê, mas era algo novo – sim – algo totalmente diferente se apossara de seus domínios mais guardados, de seus segredos mais secretos. Alguma coisa havia de diferente, ou melhor, de não-igual. E isso após o beijo.
Aquele beijo único mudara a sua vida. Não seria mais o mesmo; não era mais o mesmo. Arrastado em ângulo reto com as costas contra o branco da parede se sabia cada vez menos. Como se algum dia tivesse se sabido. No entanto agora ainda menos, menos. Menos. Tão menos que de repente mais, mais. Mais. Assustou-se. No início não. Mas assustou-se quando se percebeu desse jeito, tão revelado de si. E não por conta dele. Fora algo de fora, e talvez fosse isso o que o espantava tanto: de fora, de outrem, da boca dos fluidos da alma de algum outro. E que ele mal conhecia. Nunca havia feito antes. Isso. De beijar, não. Mas de beijar o desconhecido. Era algo como entrar em contato com um pedacinho do Indizível, da Essência de seu próprio espírito conjugado em carne. Unindo a sua carne àquela outra carne chegara ao cúmulo de seu próprio espírito: a conjunção de sua alma consigo mesma se fez tão intensa e tão singela ao mesmo tempo paradoxalmente que doeu doeu doeu tão forte que lhe deu uma falta de ar tamanha. Desfez o ângulo reto que lhe comprimia a espinha e correu à janela. As cortinas estavam fechadas. Deu à luz o seu brilho. Não dele, mas da própria luz, através do sol aceso e vespertino – afastando como a um louco a sua (in)consciência as cortinas, viu-se todo iluminado pela primeira vez: pela primeira vez a sua inteireza havia sido revelada como foto antiga, em preto-e-branco com charme de technicolor. O verde de seus olhos ardeu como o vermelho do fogo. Também havia o fogo, a paixão, o amor, o prazer, o puro tesão no olhar, voltado para a luminosidade até os confins de não-saber-onde. Ter na iluminura a salvação de ver-se a si próprio é como um girassol que roda ao redor da quentura leniente do sol.
A sensação novamente em seu corpo, em sua carne, por dentro. Quente como o sol. Queimando como o fogo mais profundo de seu ser, colorindo de verde o seu próprio sangue. Ah, o choque dos dentes, o sabor da saliva escorrendo ele adentro, a língua, as línguas, o movimento das mãos descobrindo bocas, lábios se tocando, se mordendo, comunhão mais-que-perfeita de carne & espírito. Mas não. Todo aberto, todo dado, todo claro não podia ser. Qual a vantagem de se ter por inteiro, assim, na ignorância impávida de uma rocha? Ele se sentia qual uma rocha. A diferença, porém, era que ele sabia ser uma rocha. A rocha é rocha sem saber-se de si. Não há um si. Nem possibilidade.
A possibilidade. Tantas coisas ele podia ser. Imaginara tantas vezes. A certeza de agora lhe tirava essa chance. Ou todas as outras. Ele estava certo do que era. Ali, parado em frente à janela aberta que dava pro sol queimando de verde a face: sabia-se. Com certeza. E isso não podia. Não queria. Antes, sim. Era sedutora a idéia de possuir-se por inteiro, ele que sempre se achara tão perdido em meio às suas inúmeras partes. Porém o resultado era plenamente insatisfatório. E a culpa disso era do beijo. Daquele beijo. Único que lhe fez também único. No meio do caminho um gole de saliva. Estranha. No meio de seus fluidos uma língua. Estranha. No meio de sua alma, ele-mesmo. Estranho. E pra sempre seria assim. Vendo-se como era, sem análises ou racionalismos que morreram todos naquele instante ínfimo de romantismo, ou, melhor dizendo, de não-pensar (sabe aquelas coisas doidas que a gente faz e depois se pergunta “meu-Deus-onde-é-que-eu-tava-com-a-cabeça?”). Pois é. Ele não pensava nisso. Aliás, não pensava em nada. Tinha no fundo de sua razão aquilo que deveria fazer. Um algo que lhe soprava por dentro dos ouvidos. Só que mais por dentro ainda. Decerto não adiantaria furar os tímpanos. Não. Pois agora os sussurros eram gritos e lhe apertavam a cabeça contra todos os seus ossos. Gritou, e gritou o mais forte que pôde; seu cérebro esmagando-se contra o crânio, seus músculos todos reclamando um vazio que não lhes podia oferecer. Como fosse todo fraturar, debruçou-se sobre si num ato louco, gemendo, uivando, urrando como besta. Até que num clarão de sua mente aos desesperos surgiu-lhe a derradeira e singular opção, posto que única, transmutada de certeza una: ao ver-se através daquele beijo, desnudou-se-lhe todo de suas máscaras e de suas fantasias quanto a si próprio, e isso não agüentava, não aturava se ter por completo, pesava, doía sobremaneira, tanto que seu corpo físico lhe reclamava sobre algo que nem ele nem sua (des)matéria poderiam suportar. Por impossibilidade, não por falta de escolha, pois que são diferentes: com os próprios dedos, fatigado de sua presença, arrancou de súbito os próprios olhos. Ardia e escorria todo em sangue pra fora pra fora sempre pra fora junto ao líquido verde que o sol queimara e, espesso, misturara-se à sua substância de gente.
O desespero só fez aumentar: na ignorância de saber-se por completo, não reparou que seus olhos de homem, de humana pessoa, é que nada lhe diziam: havia a sensação de si-mesmo impressa na alma, por conjugação com a própria carne. Através daquele único beijo uno viu-se por completo, obtuso em ângulo reto comprimindo as costas contra a parede branca. E não suportou. E não entendeu. Porque dói, e doeria cada vez mais. Cego do mundo, vidente de si, num ato final atirou-se sem tatear nem pestanejar pela janela aberta, sem hesitações em pleno dia de sol, girassol rodando num rodopio maluco até o chão de cimento. Cinza. Quente. Aconchegante. Finalmente a paz. Do corpo. Pois o espírito, pra sempre descoberto, não se encaixa em seu não-existir.
Descobrir-se é como bater a porta e deixar um dedo na dobradura. Mas não há dor. Então não há nada. Apenas o sol que queima ardente um fogo verde e desesperado pra dentro e por dentro da gente.

- música do post: "meu mundo caiu", Maysa

12 comentários:

Teresa disse...

meniiiiiiiiiino

Eu simplesmente adorei o seu texto de hoje, principalmente porque eu me identifiquei com umas partes hahahaha

=*

Jaya Magalhães disse...

Alex,

Eu fico sem graça de vir aqui e dizer que não li o texto. Teus comentários seeeeempre fofos no blog.

Mas olha, prometo voltar e ler tudinho. Volto mesmo. Assim que o computador voltar da UTI. Rs.

Um beijo enorme, viu?
:*

Ana Paula Vieira disse...

q texto profundo!
adorei, vc se descobre a cd passo q dah, a vida eh assim, e um beijo, eh sempre um beijo
rs
Bjs
=D

Marcel Luis disse...

caralho.

Éverton Vidal Azevedo disse...

Entendi o recado... Se descobrir é isso tudo aí mesmo...

Stella disse...

Oi, Alex, que falta eu sinto de ler vir até aqui e saber um pouquinho de você...

Bom, infelizmente, não vou poder colocar um comentário "de responsa" agora, mas prometoque volto.

Deixo um beijão para ti e (só para mostrar que não esqueci), agradeço pelo selinho Eu Vou. Assim, que sobrar um pouco mais de tempo e quando eu conseguir configurar o layout do meu blog, coloco o selo lá.

Um abração e não deixe de aparecer no Dominus. Sua presença lá sempre é requisitada e muito querida! :)

Nando Damázio disse...

Alex, sempre me impressiono quando venho aqui, ainda bem que conheci teu blog .. Li esse texto e me reconheci nele, tanto que poderia ter sido escrito por mim, é de uma riqueza emocionante !!
Parabéns mesmo !! Até mais !!

Amanda Beatriz disse...

nossa! que texto magnífico! me deixou meio perturbada! nem sei o que comentar!
beijos!

*Fe* disse...

Adorei o texto, me trouxe mta filosofia à mente (filosofia minha, entenda.. hehe)
É por isso q eu axo q pensar e se descobrir eh doer, eh pensar, eh matutar, eh descobrir q coisas q vc nao gosta em vc msmo existem... Por isso axo q as pessoas mais burrinhas sao mais felizes... Voce deve estar mtu certo d q ker se encontrar pra faze-lo se nao vc pod se arrepender!
Bjus mil
=**

Stella disse...

Ah, Alex, falar das sensações que um beijo provoca... o desnudar da alma humana... é tão difícil quanto encher um buraco de areia como toda a água do oceano.
Só que você conseguiu colocar em palavras o indizível, o incompreensível, que é dar-se por um inteiro a outros lábios e então percerber-se, talvez, vazio depois daquele beijo.

Parabéns pelo texto! Foi capaz de me fazer sentir toda a angústia da descoberta de si mesmo daquele a quem o texto se refere.

Mas, sejamos, prudentes e cuidadosos, e saboreemos os beijos sem arranacar nada de nós nem nos deixarmos levar por janelas abertas. Até porque, depois, não haverá mais corpo quente (e vivo) para se deliciar com outros beijos apaixonados. :)

Um abraço, Carioca!

P.S.: E depois, passa no Dominus que deixei um presente para ti lá.

Até mais!

Gisele Sanches disse...

aiq confortante.
me vi em varias partes

tava com saudades daqui
:*

Camila disse...

Aleeeeeeex
Adorei esse texto!
Mesmo de coraçao. Que lindo voce ouve Maysa, eu gosto. Confesso!
Ainda mais essa musicaaaa!

Beijo querido.