16.2.08

entre os dois um diálogo

“...então, é assim que funciona. Sem mais nem menos”.
Falava. Enquanto isso um cheiro absurdo de fumaça de cigarro. Odeio cigarro. Sua fumaça também. Impregnada em minhas roupas – em todas elas – sou obrigada a me sentir fedida por aquele veneno de que ele tanto gosta. Usa um perfume forte; de que adianta? Já lhe disse isso também – mas de que adianta?
“...é a vida... C’est la vie, como dizem os franceses. Se bem que eu acho que nenhum francês diz isso. Besteira... É só pra mostrarem como deixam que a gente se apodere de um pedacinho de nada da língua deles, um pedacinho tão pedacinho que eles nem usam...”
Não sei por que eu continuava insistindo nisso. Só de relance eu podia ter previsto. Besteira a minha de achar que dessa vez seria diferente, que haveria volta. Volta, entretanto, pressupõe um algo de antes, melhor. Melhor, não. Não necessariamente. Mas não isso. Isso de agora. Isso de agora eu não suporto.
“...dizem que não tem mais jeito, né. Putz, quando soube disso lembrei de ti. Na mesma hora. Fiquei me perguntando: que que será que ela tá pensando disso?”
Se me dignasse a responder, diria que: nada, não pensei e não tô pensando em nada. Somente em sair daqui e nunca mais voltar. Não pra antes, pr’aquele algo. Nem precisa de tanto. Contanto que não seja aqui, com ele. Ele que já foi de tudo um pouco pra mim. No momento não mais do que um corpo estranho, falante e irritante.
“...mas assim, por que é que tu não te despregas dessa janela desde que chegaste? Anda, vem tomar um trago comigo. Não precisa nem fumar, sei que tu não és muito chegada na erva. Mas pelo menos olha pra mim...”
Continuei na mesma posição, observando o descolorido dos outros prédios ao redor. Num deles uma mulher trocando de roupa, lentamente, a preparar-se para um encontro. Amante? Com certeza. Eu ficaria com o vermelho, se fosse ela, mas... Noutro havia um homem se masturbando em plena tarde de quinta-feira, sentado em uma banqueta de madeira com uma revista na mão. Visão aguçada: era de homem. Homens. Pelados. Transando. Quem diria, um cara com uma cara tão de macho... Mais adiante, uma família almoçando, quieta, concentrada: o pai numa cabeceira, a mãe na outra, os filhos no centro. O menino tinha uns olhos tristes vidrados no copo com suco. Parecia um pouco comigo.
“...ei, o que ‘tás vendo de tão bacana aí pra nem me ouvir?”
Levantou-se e veio até mim. Escutei o barulho do copo com uísque até a borda batendo contra o tampo da mesinha que eu lhe dera num aniversário distante. O cheiro do cigarro mais perto. A fumaça lentamente impregnando-se ainda mais fundo em minha roupa. O cheiro dele mesmo, tão característico, agora talvez a pouquíssimos centímetros de minhas costas. Estremeci de repente em um calafrio, como se dois corpos de mesma polaridade se aproximassem. Forças de repulsão agiam loucas, mas de nada adiantaram: seu braço esquerdo pousou em meu ombro.
“...ah, já ‘tá anoitecendo. Daqui a pouquinho o sol se põe. Por isso tu ‘tás aqui. Me lembro que tu sempre insistias em ver o pôr-do-sol... Antes”.
Antes. E um leve incômodo se instaurou no ambiente, tão fino como a penumbra de fumaça que perene embaçava o apartamento. A mão no ombro escorregou com braço e tudo até a cintura. Estremeci ainda mais forte. Calafrio. Forças de repulsão agiam loucas. Cargas se repelindo e por isso se unindo. Sempre achei que fosse balela, mas naquele momento de anoitecer, de sol indo-se embora, com a luz em lusco-fusco acontecia de modo a não parecer tão canhestro, apesar da mão ser a esquerda.
“...tu entendes um monte dessa parada de estrelas, né? Eu gostava de ouvir. Mas não vou pedir pra ti... não precisas...”
...eu sei, me deu vontade de completar. Permaneci parada em frente à janela com aquela mão na minha cintura, arrepios contidos e na nuca um bafo agridoce de bebida com fumaça que se colava também à minha pele. Senti-me impura, incongruente, traidora de mim mesma. Prometi-me que não mais aconteceria. Mas prometer algo a si mesmo é estar fadado à traição. De certo modo eu já sabia disso. E talvez por esse motivo é que não deixava de ir, todas as quintas-feiras, quando me ligava, dizendo:
“...pô, vem, não tô fazendo nada, nem você. Deixa o trabalho pra depois e vem pra cá, pra tomar uns tragos, fumar uma erva. Se não quiser pode vir só pra me fazer companhia, como sempre. Não farei nada, como sempre. Como queira. Não quero mais te magoar...”
Coisa de filme. Parecia decorado. Devia até ser, pois foi a única maneira de me convencer a voltar lá, depois de tudo o que já acontecera entre nós. Entre nós dois já acontecera de tudo, tudo quanto seja possível imaginar. Quando duas pessoas chegam a seus limites, quando não há mais o que surpreenda um ao outro, então o que resta é esse estranho lugar-comum de arrepios em um anoitecer de quinta-feira: uma fala forçada e qualquer que bastava pra que nós dois cumpríssemos o nosso papel.
“...uma estrela cadente... Ali, olha! Faça um pedido. De olhos fechados, hein... Isso...”
Pedi. Com fervor de uma vela acesa. Não havia nuvens no céu estrelado. A lua também não havia, escondida por detrás do homem limpando-se depois do orgasmo; a mulher já saíra em seu conjunto de vestido e sapatos azul-turquesa (eu ficaria com o vermelho... amante... dá sorte...); a família acabara de comer: a cabeceira vazia, e mais um lugar vago. Apenas o menino sentado com os olhos vidrados onde antes estivera um copo com suco. Antes. Sempre antes. Do sussurro, escutei apenas o trecho final:
“...me perdoa...”
Parecia comigo. Disse:
- Te perdôo.
E foi o que desejei à estrela. Antes. Sempre antes...

- música do post: "coisas que eu sei", Danni Carlos

8 comentários:

Teresa disse...

ultimamente você está tãããão literário! hehehehe

tá escrevendo muito bem viu, mocinho?

tô gostando de ver

=*

Jaya Magalhães disse...

A-D-O-R-E-I! Texto aberto, cru, exposto, sem meias palvras, com verdadeiras intenções. Direções traçadas, pessoas reais. Tudo se completou tão bem, Alex.

É ótimo te ler assim. Essa inspiração, esse novo caminho para onde o vento anda apontando ultimamente.

Muito bom teu texto.
Gostei demais!

Um beijo para você.
:*

Gisele Sanches disse...

Nooossa!
Incrivel como tu consegue me prender na leitura.
Muito bom mesmo.
:*

Amanda Beatriz disse...

por Deus, que dolorido! me vieram lágrimas aos olhos! e isso aqui: "Mas prometer algo a si mesmo é estar fadado à traição."
Eu sei disso tão bem que chega a doer quando penso!
lindo texto!
beijos!

Stella disse...

Oi, Alex, andei sumidíssima, não foi?

Mas gostei de reaparecer agora e te pegar em um momento tão inspirado.
Que texto forte!
Me fez lembrar dos livros do Marçal Aquino e do Rubem Fonseca. Eles não apenas olham a realidade cotidiana, eles a destrincham com uma habilidade impressionante.
E foi o que voce fez! Trouxe a baila pequenos medos, anseios e pingos de solidão que permeiam nossas vidas, o tempo todo, todo o tempo. Mas, em geral, apenas são enxergadas por um observador numa janela. Ou por um escritor habilidoso!

Parabéns pelo texto e espero que esteja tudo bem com você!

Um abração, Carioca!

P.S.: O desejo para a estrela cadente foi aquele mesmo?:)

Até mais, Alex E!

Bill Falcão disse...

Fiquei lembrando de "Janela Indiscreta", de Hitchcock, Alex! Só que, desta vez, o "crime" aconteceu do lado de cá, né?
Aquele abraço!!

Ivan Bittencourt disse...

Nossa.
É o tipo de texto que estaria em muitos livros de contos. Tem sincronia. LEgal.
^^
abraços
t+

Érica disse...

Gostei muito do seu texto!!! Posso linkar vc?dá uma passada lá no blog depois

;******