Clarice Lispector
...olhava o mar com olhos de ignorante. Olhar que não enxerga além de seus palmos o que está sendo visto em processo de seu campo de visão. Limitadamente não-humano. Olhar de cão. Que vê. Não entendendo, não entender é preciso. Não pensar é de extrema necessidade. Ver sim. Olhos cegos surdos mudos. Mas verdes. Rebentando junto às ondas lá embaixo. Parado no pico de uma pedra verde de limo. Lá do alto a possibilidade de um escorregão direto ao infinito. Às ondas verdes, qual o meu olhar, rebentando lá embaixo.
É assim que gosto do mar, de ressaca. A espuma que branca borbulhante levanta o odor da maresia que me enche todos os poros, que me entope de prazer, torpor louco a que me entrego todo taça recebendo o líquido champanha cristalino. Braços abertos na brisa fria que me leva pra longe bem longe dali, enquanto a chuva me despoja de mim mesmo, minhas roupas encharcadas de que não mais preciso. Só do mar: necessito de sua energia na noite tempestuosa como um feto necessita do líquido vital de sua mãe. Filho do mar, isso é quem sou. Isso: quem: eu. Minha identidade é marinha. Meu signo aquário. Ascendente em peixes que nadam na torrente esverdeada que corre por meus olhos adentro até o fundo de meu espírito e que depois, cachoeira, re-sobem no fluxo de minha consciência até meus dedos dos pés e mãos e olhos e cabelos extremos todos pra fora de mim. O que está fora de mim está dentro de mim. E vice-versa. Porque sou da natureza e tudo o que me chega dela na verdade sou eu mesmo. Então não me procuro mais, pois sempre me teria achado se, quando perdido, houvesse tido a idéia de me reconhecer nas coisas que outrem que portanto eu. Não me reconhecia antes porque não me via. Me idealizava. Idealizar-se é projetar-se. E todo “projetar-se” é falso pra sempre. Não. “Ver-se”. Isso. É isso o que falta. Faltava. Pois em mim já me vi. Não preciso de reconhecimentos. Tenho dois olhos que ignoram, verdes, a minha própria razão, anulando-a. Precisar de um pensamento, não o preciso, a não ser muito pouco: tenho também um terceiro olho num ponto imaginário que transcende a si próprio e a mim junto a ele, indo-me exatamente na direção contrária de todo sentido.
O mar, a chuva, a brisa fria, a pedra cheia de limo e eu, todos ondas e espumas rebentando lá embaixo, misturando-nos uns aos outros congelados como lâminas finas e escorregadias e afiadas. Cortamos a realidade em duas três quatro cinco dez cem mil milhões bilhões e sem-número de vezes e maneiras, dividindo seus significados e símbolos chegando a somente um único signo:
...na ressaca de mim percebi que sem roupa a praia brotava nua de areias e brilhos da lua que cheia lhe tirava dos braços o mar que nascia em ondas como recém-nascido que chora pelo barulho da rolha do champanha estourando de bolhas e espumas cristalinas petrificadas de limo que escorrega ao infinito na lufada da brisa que sem pé nem mãos nem cabelos escorre no refluxo de uma cachoeira que nasce da estrela cadente que caiu em pranto que se misturando às ilusões projetou de si mesmo um espelho quebrado em sete anos de azar do terceiro olho que a isso transcendeu às suas vistas a visão que via embaçada pelo rodopio louco de uma voz de pássaro sem asas porque voa pra dentro de si e de fora havia rouquidão até recomeçar mais alto sem alcançar aquele ponto inimaginalmente imaginável desaparecido numa aparição de sua própria vontade que sem ser vista não existia porque pensada porém de tudo isso restaram os restos daquilo que não dito ouvido ou visto e que permanece berrando em silêncio pra não incomodar o incômodo de alguma vez ter dado chance de expressão a algo inexplicável que inexorável não se explica não se sente não se sabe não a não ser pelo trecho que pego pela metade se revela pedaço inteiro porque todo pedaço inteiro é tudo mas que não é nada por falta de espaço que nessa noite não se acaba por medo do sucesso de recomeçar mas sem medo de existir verde e de ressaca de si...
E foi quando senti as algemas frias se fecharem num clique às minhas costas. Pessoas outras aglomeradas na calçada da praia de Copacabana, umas rindo, umas a chorar, umas a gritar, umas a jogar pedras, umas. As pessoas sempre umas enquanto eu nenhuma. Não entenderam não-entender. Procuram razão nas coisas, projetando-as. Sombras do próprio reflexo que são. Eu não. Sou mesmo o não. Mas verde. Iluminando de esperança a viatura de sirenes vermelhas e os homens de farda cinza e as pessoas outras e umas de branco azul amarelo vermelho laranja roxo anil rosa e todas mais, vendo em cada indivíduo todos os indivíduos e tudo e nada que há, através daquele signo que em vão tentei ver em completude, porque não se capta nem mesmo pela ignorância de não-saber, reconhecido somente num trecho entre reticências e sem possibilidade de nexo: o signo. O signo que é a natureza, a praia, o mar, as ondas, a chuva, a brisa, a noite, a estrela cadente, a pedra, o limo, as roupas, eu, as pessoas, os homens de farda cinza, a algema, a viatura, as sirenes, as cores... O Infinito. Não estou louco. Estou de ressaca de mim...
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...quando a gente acha que tudo tá perdido, um broto de esperança surge à beira da sacada, segura a nossa mão, enxuga as nossas lágrimas e jura todas aquelas falsas promessas em que tanto queríamos acreditar...- música do post: "o bêbado e o equilibrista", Elis Regina