29.3.08

o ato

...eu queria escrever só pra te dizer que eu não consigo mais. Mas então me detenho com meus braços desarranjados todos em cima da escrivaninha que, destra, comodamente se oferece em uma folha branca. A caneta esferográfica com sua esfera que espera na mão enrolada nos dedos sem jeito de unhas roídas de momentos doídos que não nem nunca mais. Mas se fizer o gesto até o fim, concluindo um início qualquer porém bem pensado e roído de momentos outros que não unhas, já seria tarde pr’uma volta: revolta de não saber o que te dizer, sabendo. Porque aquilo que me impede é simplesmente o ato de me encostar na esfera que gira na caneta e no papel pra me tornar refém de mim-mesmo em mentiras que, mais bem elaboradas que as minhas verdadeiras meias-verdades, talvez fizessem com que você entendesse que: eu não consigo mais. Mas então só isso já seria a minha perdição em labirintos que eu-mesmo criei à guisa de explicações a não ser aquelas mentiras de que falei mas nunca talvez nunca mesmo terei condições de escrever, uma vez que não sei como escapar se, desde a primeira vez, escrever é um ato. Escrever pra ti, então, nem saberia dizer o que é: sabendo, porém. Se desde o ponto inicial de contacto já se estabelece a conexão mútua de corpo-inteiro-papel que traça um traço e mistura-se em códigos, laços, riscos, línguas, normas, sílabas, palavras, sintagmas, orações, períodos, textos, estardalhaços hiperbólicos e catacréticos pra te dizer somente que redundantemente eu queria escrever pra te dizer: eu não consigo. Ou talvez eu queria escrever pra te: dizer. Ou quem sabe eu queria escrever pra: te. Ou ainda eu queria escrever: pra. Ou mesmo eu queria: escrever. Ou na verdade eu: queria. Ou: eu. Ou. E depois nada. Preso num ponto que dois-pontos reticentes nada dizem a não ser tudo de uma possibilidade infinita que se encerra até mesmo encerrando-se numa mensagem qualquer em um ponto final que certamente só começa as coisas assim mesmo indefinidas de nunca serem porque ficam pela metade ou se findam em si-mesmas, já que justamente é assim dessa forma que quero que você entenda, só que não tenho como – mas gostaria de – explicar. O problema, se é que é problema, pra mim todo problema é lindo pela (não) inerência de solução, é que não há como explicar o inexplicavelmente óbvio. E assim momentos alucinantes à noite na escrivaninha destra de papel roendo unhas pra sempre chegar a esse intransitivo nunca que, dois-pontos, encerra o começo do que eu queria escrever pra te dizer que não consigo: . E não consigo justa e simplesmente por causa da tua avidez por certezas, respostas e pés-no-chão que eu nunca consegui por não alcançar nem o chão, nem as respostas e nem as certezas que, pra mim, ficam sempre no teto, mas sem o teto, sempre longe, sempre pra cima, sempre nunca. Já é tarde. Já foi tarde e será sempre tarde: matutina vespertina e noturna que tarde de novo. Essa sensação de cãibra contraindo músculos espasmodicamente dolorosa reclamando a mesma posição desposicionada de muitos dias, noites e afins, chegando a delírios ainda mais loucos que maluquices mas sem hospícios ou camisas-de-força. Liberdade aprisionada totalmente. Claro, mas escuro também. As cortinas fechadas velam o desvelado filtro que fez da luz um misto escurecido que a gente chama: sombra. Eu não. Com certeza você chamaria: sombra, como se tentasse precisar o impreciso: eu mesmo, falando de mistos misturando tudo para separá-lo e, enfim, não haver fim. Você entende o que quero dizer agora, não? Não, acredito que não. Certamente incertamente você tentaria me tentar numa certeza só, englobando-me em um significado só (tão sozinho) como signo quebrado e o espelho cínico de teu estojo de maquiagem que, aprisionado em tua vagamente precisa prisão, em seu reflexo apenas: você. Mas não posso assim pôr as coisas tão em pratos-limpos, porque até isso em mim pra ti é sujo, ou talvez indefinível. O que pra ti são ambos. Coitados de nós, digo, de teu espelho e de mim, que somos obrigados a momentos de luz em meio à escuridão (pra ti: sombra) a refletir as incertezas que transformas em algo certo pra te poder agarrar a uma realidade doentia porque excludente de todas as outras, inclusive você, o espelho e eu. Principalmente você (e o espelho, e eu) que, à parte, aceitamos somente enquanto queres ter: (a) certeza. Assim talvez sejamos apenas os parênteses que lhe (in)determinamos o sentido, porém causando o (d)efeito de deixar-te tão sóbrio e tão bêbado que acreditas piamente estar em linha reta. Talvez agora, seja lá quando foi/é/será, eu nunca saiba porém sabendo o que tanto eu queria mas não querendo te dizer: ...

- música do post: "boa sorte/good luck", Vanessa da Mata & Ben Harper

23.3.08

num dia de páscoa

...falou-me de flores e chocolate. Jogado num canto da sala. De flores porque eu cheirava à inocência de um jasmim, por causa da singeleza de uma margarida e porque reinava em mim a paz de um cravo branco. Não mais rubro por falta daquela ganância de antes. Não. Encerrado em mim. Sepultura de minha alma. Meu corpo. Sem gana de vida. Eu jogado num canto da sala. De chocolate porque amargo, do jeito que eu gostava. Não mais doce por falta daqueles tempos de antes, quando tudo não passava de manhãs e cafés na cama e morangos com chantilly. Não. Os morangos agora mofaram. É tempo de nova colheita. Sem gana de lida. Eu jogado num canto da sala.
Do outro lado – oposto – antagonista você. Encarando os meus pés cruzados nas vestes brancas. Já me havia falado. Silêncio. Nada mais agora era dito. E nem deveria ser. O que eu precisava saber estava em mim mesmo, porém em surpresa ainda não revelada. Segredo em teus olhos verdes, transbordando de lágrimas por minha incompreensão. Como se eu pudesse facilmente desfazer aquele laço de fita vermelha de cetim e desvencilhar-me do papel-embrulho colorido e brilhante, revelando à luz da escuridão de minha alma um ovo: um ovo de chocolate e, ao abri-lo, extasiar-me ante a beleza intacta da rosa: branca – como um pedido de paz. Em vez de lenços, um próprio ser vivo e complexo e belo me implorando a paz que no início pensei ser a do cravo. Mas não, não é a mesma paz funérea de um cravo branco, descolorido e revelado de súbito em sua nudez por deixar a sua vermelhidão escorrer minhas veias afora manchando as minhas vestes brancas.
Só então entendi que era você, do outro lado da sala e seus olhos verdes transbordando antagonismo, parábola de mágico usada pra me fazer enxergar, pra me fazer finalmente enxergar que, na verdade, eu estava errado esse tempo todo, ao acreditar que a única paz que me era possível era aquela de cravos brancos e nus e seu vermelho escorrendo aquele meu vermelho pra fora de mim. Mas talvez agora seja tarde demais, pois, chegando a tal compreensão, perdeu-se aquele aroma súbito da inocência de um jasmim que pairava no ar e restou-me apenas a loucura amarela do centro de uma margarida.
Hoje é domingo de Páscoa. Hoje não há sol nesse domingo. Não pode haver loucura em um domingo de Páscoa. A não ser que se negasse a si mesmo, à sua própria existência: um renascer, uma renovação, um rejubilar-se de vida e morte. E então talvez – e só talvez – eu poderia crer que haveria uma esperança em meus fluidos agora não mais rubros e sim lívidos não como cravos, jasmins ou margaridas, e sim como uma rosa branca – branca rosa, isso apenas, apenas isso, em inverso e reverso – e não à paz funérea, olor de inocência e loucura, como aquelas, em que seus contrários lhes são não só antitéticos como paradoxos em si mesmos. E então talvez – e só talvez – eu percebesse finalmente que sim, meu deus sim, há solução, há verdade, há você, há alguma esperança nesses teus olhos verdes transbordando de antagonismo do outro lado da sala. Quem sabe algum dia eu possa acreditar nesse teu gesto de laços de fita vermelha de cetim e embrulho colorido e brilhante: um ovo de chocolate amargo com uma rosa branca dentro.
Simplesmente assim ficaria, agradecido e morto de Paixão, às vésperas da aleluia de teu chamado que preciso acreditar ser sincero, mesmo que adornado do chocolate amargo que adoro, do embrulho e da fita que me enchem os olhos, e tudo isso pra ressuscitar hoje, em pleno domingo de Páscoa: outro, renovado, revigorado, renascido, quem sabe em um ovo também outro, também adornado tão belamente e com a mesma boa intenção pulsando por dentro, intenção sincera, de coração, de cor, que é justamente o que vale e o que é justo a você.
Justo, mas quem aqui falou em justiça? Não, não posso esquecer, não posso pacificamente esquecer o que fizeste apenas por um gesto tardio e agora oco de significado. Por um momento deixei-me enganar, por um instante quis estar enganado, errado, avesso. Mas não posso, e nem poderia. Trair a mim mesmo não me é mais uma opção. Tenho de ir até o final, até o fundo, ao fim de minhas próprias forças esvaindo-se nesse canto de sala – assim te dou o que mereces: em vez de branca rosa branca, um jardim inteiro de cravos também brancos e rubros, mas funestos, decorando a tua paz infernal de cova-rasa, o cheiro sufocante da inocência de jasmins e a irritante singeleza louca e branca-amarela das margaridas que, todas flores, todas unidas, cerrarão os dentes do sorriso diabólico e frio e sarcástico da vingança que eu quero fria congelante neste domingo de Páscoa absolutamente sem sol e tomado pela traição que me infligiste: tu és Judas e me renegaste perante os teus, antes mesmo de te renegares a mim mesmo, e agora choras essas tuas lágrimas verdes (de pena, arrependidas?), depois de me crucificares e de me veres morrer aos teus pés. Porém nunca implorei nem imploraria clemência. Eu quero a revanche: tu vencido derrotado combalido massacrado aos meus pés cruzados.
Agora não me venhas com choros, ovos e adornos, muito menos com brancas rosas brancas: tuas lágrimas são de crocodilo, teus verdes olhos de vidro, tua esperança é simples receio. Não fujas, agora é tarde demais: já me extravasei todo. Estou de novo puro, de alma lavada, de espírito outro que não a cor rubra de minhas vestes antes brancas, prova maior da tua traição de outrora. Sento-me e então faço de meu sangue encharcado o vinho tinto com que brindarei a minha vitória. Até a última gota. Até espremer meus panos de tal maneira que se purifiquem de novo, brancos como o novo fluido que me corre nas veias. Sozinho, bêbado, completamente inebriado de minha nova existência, de meu novo eu que tu desperdiçaste, te direi:
Nunca mais me fale de flores e chocolate. É tarde demais. É Páscoa. Não acredito em ti...

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...a sempre queridíssima Jaya, lá do seu "-Deixa eu brincar de ser feliz?", resolveu premiar o inacreditável mundo de alex e! com mais esse selinho super ultra bacana. Ela afirma que este que vos escreve é um dos "blogueiros que sabem comentar" e eu fico muito feliz de saber disso, pois sempre faço questão de ler os blogs que aqui 'tão linkados (quando posso, claro...) e deixar umas palavrinhas de carinho. Bom, resolvi então não "indicar" propriamente blogs a receber também esse selinho, e sim prestar uma homenagem àquelas pessoas que aparecem aqui pelo mundo e também "sabem comentar", deixando outras palavrinhas de carinho pra mim. São elas:

- Cris ("Dominus");
- Jaya ("-Deixa eu brincar de ser feliz?");
- Aninha ("Pensamentos da poetisa");
- Amanda Bia ("É só saudade...");
- Teresa ("Caneta vazia")

...beijão!!!...

...mais um presentinho liiindo de viver, dessa vez dado ao mundo pela fofíssima Amanda Bia, lá do seu "É só saudade...". Esse é um selinho muito especial pois, além de ter sido criado agorinha pela Amanda, representa aqueles que ela considera como seus amigos virtuais na blogosfera. E eu me sinto muito honrado de fazer parte deles, querida!!! Bom, como não poderia deixar de ser, todos aqueles que aqui estão linkados podem se sentir agraciados com o selinho, pois já os considero como verdadeiros amigos virtuais, tá bom? Beijão a todos!!!...
...ps: o Snoopy não é uma graça??? rs...

- música do post: "o amanhã", Simone

20.3.08

saudades de mim

...ultimamente tenho postado apenas textos que configuram o outro. Bom, não que neste "outro" que escrevo não tenha algo do "mim" que motivou esse post; é claro que se fundem as interferências constantes que sofro (e que todos nós sofremos, obviamente...) às minhas próprias posições e concepções do que seria o mundo & afins. Massss, pralém desse discurso que se quer quase como um relato psicologístico do meu atual estado de consciência - ou não... - o fato é bem mais simples. Na verdade, nada tem de complicado e é: estava com saudades. E já é engraçado tudo isso por não ser 1 "saudade". Aliás, nunca consegui escrever "saudade", assim, pura, no singular, sem achar que tô sendo, pra dizer o mínimo e ficar no limiar dos limiares da superficialidade, pedante (e como todo pedantismo, artificial...). Mas vá lá, não é sobre isso esse quiprocó todo. Saudades escrevo como quem tem os pés no chão de (se) saber que é diluído nessa grande massa que nos rodeia. De gentes, barulhos, luzes, escuros, números, notícias... enfim, poderia citar infinitamente todas essas pequenas coisinhas, diminutas partes do que se tem pelo belo nome de modernidade. Somos todos modernos, certo? Certíssimo. E não por escolha, mas por simples condicionamento. Não se dá pra viver fora da roda, pra citar palavrinha de Caio F. e me sentir de certa forma íntimo e erudito (anacronismo óbvio...) e/ou virtualmente desconectado disso tudo... oops, eu disse desconectado? Perdão, pois nada disso se justifica num mundo que só funciona à base de teias ultra modernas de cabos de fibra ótica, carbono, bits e pixels... o quão grande é teu hd? será a pergunta de pós "ismos" de "classe". Não importa, e sim o que eu faço com ele através do meu incrível processador (possível resposta...). Vem cá, o assunto não era eu e a saudade de mim? Ah sim, me distraí. Talvez porque a síndrome do "quem sou eu?" nunca encheu tantos consultórios de pseudo terapeutas, analistas, psicólogos e demais experts do gênero que ainda tenta nos decifrar. Quem conhece a nossa alma? quem pode desvendá-la? Ninguém, jamais (se é que ela existe... "ela"??? e eu achando que feminismo tava fora de moda...). E tá, não porque não se justifique (?) mais, e sim porque não dá mais. Entender-se não vai resolver nada, e muito menos punhetismos deslocados. A esfinge vai é te comer, meu caro. Tudo bem, admito que a coisa toda fugiu ao meu controle, logo ao MEU, aquariano de carteirinha (de nascimento e horóscopo), neurótico de plantão e membro ad infinitum do clube dos suicidas fracassados (vizinho à sede dos mal-amados e não-correspondidos e incompreendidos-pela-humanidade-vazia-de-significado), em que chafurdo de vez em quando........................ Ufa, pronto. Matei as saudades e desabafei comigo mesmo. O triste da estória (que não tem moral, é claro) é que me acho tão melhor quando não apareço por aqui, digo, a não ser quando a interferência alheia me obriga a descrevê-la nos textos em que me mostro mais eu do que nesses posts cafonas envernizados pra parecer "de conteúdo". Aos "outros", então...

- música do post: "maior abandonado", Cazuza

15.3.08

pelo nada um fio de lã

“Será que vale a pena abrir a janela, escancarar a alma e enfrentar o mundo?”

...assim que se vai nessa noite sabe-se que não há mais jeito. A repetição é sempre especular e sempre pra baixo. Não há como subir, não há como se salvar – e pra quê? se já não há serventia nem pros sapatos gastos que não fazem barulho de passos – de nada? No silêncio te procuro não como quem quer escapar; sei que a queda é iminente. Questão de tempo (ou de querer, simples coragem...). Te procuro como a face outra dessa que enxergo aqui por dentro, com esse meu terceiro olho furado e vazio que por muito tempo acreditei ser a solução de tudo. Da mesma forma como não te encontrei, nem em sorrisos nem no cuspe que ainda escorre pelo meu rosto, não vislumbrei aquela face minha que tu me deste.
E as folhas agonizam como as cinzas das horas que se findam no relógio opulento e sem ponteiros. A única luz possível é um rastro de rastilho da lã que, pólvora, estende a explosão anunciada lá bem longe de onde estou – pra onde vou. Daqui a pouco, agora não. Segure-se, segure-se bem firme ao corrimão. Não queiras cair antes da hora, despencar ante o segundo exato da queda-livre ensaiada. A simetria é absurda, envolvente, quase me hipnotiza em seu mimetismo próprio. Não querias saber a sensação? Não querias, de uma vez por todas, acabar com a dor? É simples. Eu sei. Esperemos, pois. Que ao longe a vista embaça, as lentes sujas, o mundo estagnado e as minhas lentes sujas, ou esse mundo de braços retorcidos e pelados? essa natureza morta-viva, essa penumbra de frio e solidão. Não me desampares agora, não há mais ninguém aqui. Aqui. Aqui não há mais ninguém. Tens razão. Mas é preciso que se enfrente tudo por si mesmo. Não há fuga, não há jeito. As coisas clamam por ti. E que venhas tu, às coisas, que elas te esperam, que te espero. Não aí. Não daí onde estás. Não. Vem a mim.
Não escuto o clamor. Só o silêncio preenche o lugar, esse lugar que é sempre o mesmo, até nunca mais. Nem medo – não, não há medo –, apenas essa sensação de corte fino e a pele enrugando-se e descascando-se até que pequeníssimas ranhuras brotem em sangue, rusgas de meu corpo com o corpo do mundo, que rejeita essa matéria sua como feto abortado de minha mãe, da primeira mãe, de todas as mães. Há sempre o momento em se regurgitam os abscessos purulentos que incomodam à carne alheia, à túrgida carne da natureza que se nega ao colorido que lhe mascara o sentido último, a pulsão primeira: a liberdade. Contudo a liberdade é cruel, amarga, feia, só e não serve de nada. Ninguém a quer. Não a quero.
Apanho o fio. O bolo ainda é pequeno. Posso vê-lo meio sem graça, envergonhado e verde um pouco mais abaixo. E confortável. Aquele novelo de lã em verde bolo transmite o acalento de um abraço teu, apertado, amigo, paixão de graça descoberto em simples desenrolar, movimento contínuo, abrir de zíperes, botões espatifados no duro e sujo chão de concreto. É lama, não sujemos as meias brancas, não maculemos o nosso segredo só nosso, não deixemos nós que os outros, à espreita, porque sempre os outros à espreita, façam razão de nossos atos, maneiras tão nossas de ser. Danem-se. Um fio de lã verde, você. As coisas clamam por mim. Me espera, tô indo. O vento bate em minhas costas, zéfiro, violento, cambaleio qual bêbado por ti, só naquele fio de lã me seguro, e só por ele – você – até ti, me guio. O novelo corre veloz lá pra baixo por onde as vistas embaçam e os ruídos misturam-se ao murmúrio das folhas que viram cinzas e cobrem o manto rubro escarlate do término num baque seco, gritado, sereno...
- música do post: "esquadros", Adriana Calcanhotto

10.3.08

bicho-gente

...dos vestígios da causa, efeito. Então o metrô parou. Saiu. As outras estátuas humanas também. Pelo mesmo buraco, caminho, resquício de passagem passavam passageiros espremidos de si-mesmos, comprimindo sensações em kbits que era pra caber tudo, bem compactadinho, des-frag-men-ta-do. Coisas a fazer, coisas que são. Sem se deixar abater. Não, os circuitos não agüentariam sobrecarga. Então curto-circuito.

Aconteceu.

E de repente convexo. Riu-se quando ele disse. Convexo convexamente num estreito que não Bósforo mas assim estreito, dois de cada vez – à direita, pros que param e cedem passagem à pressa alheia. Em todo lugar do mundo é assim. Sim senhor, me desculpe, pois não, passar bem (mal). Sorriu um só-riso que nem da outra vez. Convexo, pensou, sentindo aquela mesma graça, porém já um pouco desbotada, de antes. Durante agora depois. Já passou. Hoje em dia é tudo... Nada, da mesma forma que antes-agora já era pra ser-indo antes-agora-depois. Não. Isso não é coisa de gente. Nem de bicho. Bicho-gente. Ser humano? (O) ser: entidade do mundo biossocial, quer mais abstrata, quer mais concreta. E mais ou menos? É, pode ser. Todo mundo e ninguém se dá conta da graça dos degraus da escada rolante subindo subindo subindo até o ponto onde engole a si mesma a subir-se engolir-se sempre num movimento eterno maquinal funcional pragmaticamente prático. Nem se olham. Ninguém mais se olha no olho. Parecem todos subindo subindo subindo até o ponto onde engolem a si mesmos a subirem-se engolirem-se sempre num movimento eterno maquinal funcional pragmaticamente prático. Igual à escada rolante que só rola o rolo desse abatedouro pró-e-contra-humano fabricado por essas entidades (mais) concretas do mundo biossocial. Humanos. Não perceberam ainda porque seus circuitos transístores de plasma precisam de lubrificação extra. E na cabeça que processa só as contas a vencer. Faz de conta até o que é de graça. For free, for all, forró. E os robozinhos dançam suas mesmas danças robóticas até que, robôs integralmente, novamente na segunda-feira recomeçam do começo ao fim. Hoje é sexta-feira, convexo, ninguém achou graça. Minha vez de passar pela catraca...

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...tanto a Andréia, lá do seu "Relatos de uma guerra pessoal", quanto a Aninha, do seu "Pensamentos da poetisa", resolveram premiar o inacreditável mundo de alex e! com mais esse selinho suuuuper legal!!!!! Ambas afirmam que "esse blog não me sai da cabeça" e eu começo a acreditar viu... (ou será que foi só 1 coincidência as 2 lembrarem aqui do mundo ao mesmo tempo...? bom, como eu não acredito muito em coincidências...rs). Enfim, agradeço a ti, Andréia, e igualmente a ti, Aninha, pela lembrancinha muito da bacana, viu!!! Um beijo bem grande pra vocês, queridas!!!...

(os blogs que "não me saem da cabeça" indicados ao selinho são:

- "Dominus";
- "Deixa eu brincar de ser feliz?";
- "É só saudade...";
- "Caneta vazia";
- "Chá das cinco"...)

- música do post: "encontros e despedidas", Maria Rita

5.3.08

crochê

...No braço a sacola pesava de ovos e verduras. No meio da rua as próximas contas a pagar. Veias azuladas pelo esforço e a cabeça levemente dolorida pelo cansaço. Dessa vez nem dinheiro pro cigarro havia sobrado, besta constatação. Distraída no sinal aberto, a buzina pegou a mulher de surpresa em seu vestido estampado. Quem diria, as pessoas riam escondidas, riam dela? quem diria que hoje aquela mulher andaria por aí de óculos de grau e vestidos estampados. Ela escutava. Ela via. E sujos, imundos da poeira do movimento do dia. Que não muda, impregnado nas roupas, impresso no rosto. Marcas, manchas, furos e rugas acumulados dentro da máquina com amaciante.
Do outro lado um longo destino se descortinava em meio à multidão de fim de tarde. Mas não tinha como passar. O cansaço era muito grande e não havia espaço pra ela, tão mulher, tão pesada de suas angústias, de suas ânsias e desejos jamais realizados. Aonde ela estava indo? Tão cedo pra chegar em casa, tão atrasada em relação a si. Tanto o que fazer, meu deus. E quase já não há mais sol. Melhor correr, já que fica difícil enxergá-la, tão comum, tão indiscernível, dentre todos que passam na mistura das gentes num início de noite, período de dúvida e olhos cada vez mais fechados, sonolentos.
No entanto a distância é grande, é longe e pra sempre. Aquela mulher no perigo de se apequenar e ser engolida, ou quem sabe pisada até esmagar-se na turba lodosa. Sem saída, havia apenas um resto de trilho, um esboço de caminho o mais curto, o mais fácil – frágil – a seguir. Não tinha medo de se humilhar, que nessas horas ninguém repara, ninguém nota. Os barulhos são constantes, as pessoas tão despertas em seus mundos tão particulares. Me-ga-lo-ma-ni-a. Há muito a mulher não pensava. Nisso, em saber o que é isso. Em sentir correr-lhe nas veias justamente isso. Pura loucura, pura substância. Houve uma época em que sim, havia importância em não se importar e, num longo suspiro, expirou suas dores de tal modo que nem mesmo o cigarro fazia falta. A baforada que deu espantou a cefaléia, afinou o sangue e deixou de lado a sacola.
Na possibilidade de ser livre novamente, aquela mulher apostou as últimas fichas que encontrou pela calçada suja. Sim, faz muito tempo. Sim, agora tudo mudou. Sim, está tudo tão diferente. Porém a mulher sabia que, de dentro daquele corpo, na sensação embriagante da câimbra de seu ser, havia forças pra gerar naquele útero um dia fértil a força de vida de um sorriso dourado de girassol. Gira sol, gira mulher, gira mundo até a fonte cristalina, até o momento de êxtase, cabelos longos soltos ao vento, ao sabor da doce maré, flutuando na onda de paz e amor, dedos em v, flor no cabelo, qual o berloque rodando, pendurado ao pescoço jovem mordido pela boca vermelha dele, dele que fora a sua paixão, dele que um dia sumiu depois daquela noite perfeita, louca e de pura ressaca no dia seguinte. Dele de que nunca mais viu os pêlos, os longos cachos, o corpo rijo, a camisa florida, os poemas endoidecidos e altos, tão altos quanto o volume do Chico no toca-fitas – shhhh, abaixa que é proibido – aquela coragem, aquele destemor, aquele brado eterno que pra sempre sumiu. Nunca mais teve notícias, nunca mais aquela voz rouca rapidinho no orelhão, que era pra não perder a ficha. Perdeu. De repente o sonho acabou.
Não queria passar por maluca pros pais, família & companhia Ltda., e assim nunca mais fumou, a não ser Carlton, encaretou, tomou jeito, fez faculdade, mestrado e doutorado, conheceu um advogado promissor, só que bem mais velho que ela, entradas pronunciadas, casou-se, a lua-de-mel foi uma droga (o cara brochou mas tudo bem ele sempre brocha), teve dois filhos (nos únicos dois minutos que o cara não brochou, um pra cada um), a promessa foi pro brejo, o apartamento é de aluguel, nunca fez carreira, os diplomas esquecidos na poeira do fundo do armário, mulher minha não trabalha, grandes coisas, vivem na merda, a filha é lésbica, o filho é gay, melhor assim não me dão netos, tô velha, provavelmente com câncer, sente tumores crescerem dentro de si, nutrindo-se de sua matéria deteriorada, apossando-se de seu útero. O que mais posso gerar?
Alguns pássaros cantavam. Não, eram rolinhas que arrulhavam. Feias, tristes, cinzas, sujas. Não havia ninguém na rua. A praça deserta. Era frio, era inverno, o chafariz entupido, resfriado. Passara em claro a madrugada. Não deram por falta, a comida tava congelada mesmo. Tomou a sacola do chão. Os ovos quebraram, as verduras fediam. O sol, tímido, em vão iluminava a mulher naquela pontinha de concreto...

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...a sempre fofíssima Jaya, lá do seu "Deixa eu brincar de ser feliz?" conferiu ao mundo aqui outro selinho de qualidade. Ela afirma que esse blog é "total force" e eu agradeço de montão, querida... o selinho e o carinho que tens por mim. Beijão pra ti!!!...

(...os blogs "total force" que indico são:

- "Pensamentos da poetisa";
- "Através do meu espelho"...)

...outro prêmio, dessa vez conferido ao mundo pela gentilíssima Cris, lá do seu maravilhoso "Dominus". Ela diz que esse blog de quem vos escreve "proporciona sensações alucinógenas"... ai, que medo...rs Achei super divertido esse selinho. Muito obrigado mesmo pela lembrança, querida mineira. Um beijão carioca procê!!! Ahhh sim: a Cris também falou que o blog aqui é "parada obrigatória", masssss como o mundo já havia levado esse selinho da Aninha, lá do seu "Pensamentos da poetisa", achei por bem não repetir né. Porém, Cris querida, teu nome tá lá no selinho também, por mais essa lembrancinha. Outro muito obrigado e outro beijo carioca pra ti, viu...

(...os blogs altamente "alucinógenos" que indico são:

- "Jornal da lua";
- "Pois já é hora de pôr recordações para fora"...)

- música do post: "think (freedom)", Aretha Franklin