5.3.08

crochê

...No braço a sacola pesava de ovos e verduras. No meio da rua as próximas contas a pagar. Veias azuladas pelo esforço e a cabeça levemente dolorida pelo cansaço. Dessa vez nem dinheiro pro cigarro havia sobrado, besta constatação. Distraída no sinal aberto, a buzina pegou a mulher de surpresa em seu vestido estampado. Quem diria, as pessoas riam escondidas, riam dela? quem diria que hoje aquela mulher andaria por aí de óculos de grau e vestidos estampados. Ela escutava. Ela via. E sujos, imundos da poeira do movimento do dia. Que não muda, impregnado nas roupas, impresso no rosto. Marcas, manchas, furos e rugas acumulados dentro da máquina com amaciante.
Do outro lado um longo destino se descortinava em meio à multidão de fim de tarde. Mas não tinha como passar. O cansaço era muito grande e não havia espaço pra ela, tão mulher, tão pesada de suas angústias, de suas ânsias e desejos jamais realizados. Aonde ela estava indo? Tão cedo pra chegar em casa, tão atrasada em relação a si. Tanto o que fazer, meu deus. E quase já não há mais sol. Melhor correr, já que fica difícil enxergá-la, tão comum, tão indiscernível, dentre todos que passam na mistura das gentes num início de noite, período de dúvida e olhos cada vez mais fechados, sonolentos.
No entanto a distância é grande, é longe e pra sempre. Aquela mulher no perigo de se apequenar e ser engolida, ou quem sabe pisada até esmagar-se na turba lodosa. Sem saída, havia apenas um resto de trilho, um esboço de caminho o mais curto, o mais fácil – frágil – a seguir. Não tinha medo de se humilhar, que nessas horas ninguém repara, ninguém nota. Os barulhos são constantes, as pessoas tão despertas em seus mundos tão particulares. Me-ga-lo-ma-ni-a. Há muito a mulher não pensava. Nisso, em saber o que é isso. Em sentir correr-lhe nas veias justamente isso. Pura loucura, pura substância. Houve uma época em que sim, havia importância em não se importar e, num longo suspiro, expirou suas dores de tal modo que nem mesmo o cigarro fazia falta. A baforada que deu espantou a cefaléia, afinou o sangue e deixou de lado a sacola.
Na possibilidade de ser livre novamente, aquela mulher apostou as últimas fichas que encontrou pela calçada suja. Sim, faz muito tempo. Sim, agora tudo mudou. Sim, está tudo tão diferente. Porém a mulher sabia que, de dentro daquele corpo, na sensação embriagante da câimbra de seu ser, havia forças pra gerar naquele útero um dia fértil a força de vida de um sorriso dourado de girassol. Gira sol, gira mulher, gira mundo até a fonte cristalina, até o momento de êxtase, cabelos longos soltos ao vento, ao sabor da doce maré, flutuando na onda de paz e amor, dedos em v, flor no cabelo, qual o berloque rodando, pendurado ao pescoço jovem mordido pela boca vermelha dele, dele que fora a sua paixão, dele que um dia sumiu depois daquela noite perfeita, louca e de pura ressaca no dia seguinte. Dele de que nunca mais viu os pêlos, os longos cachos, o corpo rijo, a camisa florida, os poemas endoidecidos e altos, tão altos quanto o volume do Chico no toca-fitas – shhhh, abaixa que é proibido – aquela coragem, aquele destemor, aquele brado eterno que pra sempre sumiu. Nunca mais teve notícias, nunca mais aquela voz rouca rapidinho no orelhão, que era pra não perder a ficha. Perdeu. De repente o sonho acabou.
Não queria passar por maluca pros pais, família & companhia Ltda., e assim nunca mais fumou, a não ser Carlton, encaretou, tomou jeito, fez faculdade, mestrado e doutorado, conheceu um advogado promissor, só que bem mais velho que ela, entradas pronunciadas, casou-se, a lua-de-mel foi uma droga (o cara brochou mas tudo bem ele sempre brocha), teve dois filhos (nos únicos dois minutos que o cara não brochou, um pra cada um), a promessa foi pro brejo, o apartamento é de aluguel, nunca fez carreira, os diplomas esquecidos na poeira do fundo do armário, mulher minha não trabalha, grandes coisas, vivem na merda, a filha é lésbica, o filho é gay, melhor assim não me dão netos, tô velha, provavelmente com câncer, sente tumores crescerem dentro de si, nutrindo-se de sua matéria deteriorada, apossando-se de seu útero. O que mais posso gerar?
Alguns pássaros cantavam. Não, eram rolinhas que arrulhavam. Feias, tristes, cinzas, sujas. Não havia ninguém na rua. A praça deserta. Era frio, era inverno, o chafariz entupido, resfriado. Passara em claro a madrugada. Não deram por falta, a comida tava congelada mesmo. Tomou a sacola do chão. Os ovos quebraram, as verduras fediam. O sol, tímido, em vão iluminava a mulher naquela pontinha de concreto...

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...a sempre fofíssima Jaya, lá do seu "Deixa eu brincar de ser feliz?" conferiu ao mundo aqui outro selinho de qualidade. Ela afirma que esse blog é "total force" e eu agradeço de montão, querida... o selinho e o carinho que tens por mim. Beijão pra ti!!!...

(...os blogs "total force" que indico são:

- "Pensamentos da poetisa";
- "Através do meu espelho"...)

...outro prêmio, dessa vez conferido ao mundo pela gentilíssima Cris, lá do seu maravilhoso "Dominus". Ela diz que esse blog de quem vos escreve "proporciona sensações alucinógenas"... ai, que medo...rs Achei super divertido esse selinho. Muito obrigado mesmo pela lembrança, querida mineira. Um beijão carioca procê!!! Ahhh sim: a Cris também falou que o blog aqui é "parada obrigatória", masssss como o mundo já havia levado esse selinho da Aninha, lá do seu "Pensamentos da poetisa", achei por bem não repetir né. Porém, Cris querida, teu nome tá lá no selinho também, por mais essa lembrancinha. Outro muito obrigado e outro beijo carioca pra ti, viu...

(...os blogs altamente "alucinógenos" que indico são:

- "Jornal da lua";
- "Pois já é hora de pôr recordações para fora"...)

- música do post: "think (freedom)", Aretha Franklin

10 comentários:

Gustavo Krawser disse...

Será que todo casamento é assim, esse fim da linha?

Teresa disse...

owwww. esse post me fez refletir um monte coisas agora.....

caramba!

Bill Falcão disse...

Obrigado pela lembrança, Alex!!!!
O post "parece" grande à primeira vista, mas seu estilo suave de escrever vai levando a gente de mansinho...Tadinha da dona!!!!!
Grande abraço!!!

Anônimo disse...

que drama!! coitada da mulher!! snif snif fiquei com medo agora..rs

hehe..

mas as vezes a vida perde a graça msm.. o lance é luar msm.. não tem outra saída..rs

te indiquei um selo queridooooooo

Teresa disse...

alexxxxxxxxxxx, te indiquei a uma brincadeira super legal.
passa lá e vê.

bjuuuuuu

Stella disse...

Depois de ler seu texto Alex me deu um baita medo de casar, sabia?

Vai que acontece uma coisa dessas. Ai, não! Prefiro nem tentar! rsrs

Mas, gostei muito do que escreveu. Amo sempre vir aqui ler seus posts. Sei lá, você tem uma mente muito criativa, de sangria desatada mesmo! Começo a ler e parece que entro no que você escreve. É incrível!

Bom, mas hoje não vou me delongar. Apenas agradeço por suas palavras quanto ao selinho que te dei. E que acho que seu blog merece, sim.

Um abraçãozão, Carioca, bom de escrita!

P.S.: Li seu texto um dia depois do dia internacional da mulher e não é que ele cai como uma luva nesta data que todo mundo acha linda, mas que mulher nenhuma, na verdade comemora?! :O)

Até mais, querido!

Ivan Bittencourt disse...

Casamento só é assim quando a pessoa casa com a pessoa errada.
Oo'
e infelizmente isso tá acontecendo vezes demais para ser ignorado
=(

abraços

*Fe* disse...

Alex!!! Como vai, meu kerido?
Muuuuito obrigada mesmo pelo selo! Ja ta lah no espelho! uhauhahahua
Vc n sabe como eu me inflo qndo ganhoselos, especialmente d vc, q eh alguem q eu acho q escreve super bem. Pra mim, um dos melhores da minha blogsfera.
E lendo seu texto, logo hj, um dia apos o dia internacional da mulher me fez refletir muito sobre a condicao de cada uma de nos, como mulheres e seres humanos...
Bjos mil
=**

Ana Paula Vieira disse...

ai q texto triste, coitadinha da mulher, mas nunca eh tarde demais pra se lutar pelo q acredita!
ps: obrigada pelo selinhu e tem um pra ti lah no meu blog
rs
Bjs

Anônimo disse...

Você está no caminho do bom contista cuja síntese se resume na máxima do pássaro: um máximo de canto num mínimo de corpo. Beços.