4.2.11

passo marcado

...é como se fossem todos pra onde não houvesse fim. Até lá na frente, bem no ponto depois que os olhos não mais alcançam, na linha-limite que se chama de horizonte, aquela fila de homens e mulheres estendia-se paciente, passo a passo, num destino certo e irrevogável.
De onde estou, posso tocar suas roupas – se quisesse. Mas não. Não chamar atenção pra mim mesmo talvez seja necessário neste momento em que compreendo tão pouco e parcamente o que acontece à minha volta. Na verdade buscava apenas um jornal, as notícias, os acontecidos, as coisas de nome de fato e de direito. E quem sabe criticá-las, como habitualmente faço. E agora? O que fazer? Não se critica – e pior! – não se pode aproximar de algo inominado. O fato de estas pessoas todas que não conheço estarem em fila, como que marcadas, em transe, indo a não sei onde desse jeito tão plácido e absorto, me faz ter medo de mim. Será que de repente enlouqueci e ninguém me disse? Isso tudo é muito perigoso. Melhor voltar para o cômodo de minha confortável residência com vigilantes à porta. Quem sabe seja só uma vertigem?
E num instante muito rápido percebeu que não dormia, pois se ele também andava, como os outros, certo porém perdido naquela louca caminhada em fila. Tinha de buscá-lo! Que loucura: agora era sério, conhecia alguém – ele – e sabia que tudo aquilo era real.
Foi apenas um relance. A certeza, no entanto, era absoluta: era ele era ele era ele. Preciso tirá-lo dessa manada, dessa coisa que acontece sem que eu possa explicar, dar-lhe um nome. Nem ao menos um grito. Não tenho esse direito assim como um cão não tem outro direito a não ser o de adorar o dono como se o sacrifício fosse eterno. Não me foi permitido; não me sacrifico em nome do que não posso adorar: não posso te adorar. Perdoe-me, mas tenho de buscá-lo. Tenho de salvá-lo.
Chamava-o pelo nome, mas meu desespero era interno, a voz saía de dentro para ainda mais dentro de mim. Num momento, via-o; noutro, não o via. Aparecia e desaparecia entre as cadeias daquela casta una que se misturava e cruzava-se entre si, subindo e descendo através das colinas longínquas.
Os olhos, os olhos das pessoas vidrados de um vidro opaco, cego, mas estranhamente lúcido, como se a todas elas, menos a mim, aquilo tivesse algum sentido, como se dominadas por um alumbramento, como se certeiras flechas em direção ao deus, ao Olimpo, à coisa que transcende o fim da própria coisa. Eu me espanto. Por que não foi me dado isso? Sou uma espécie de “escolhido”? Talvez seja apenas um renegado, como se esquecido pelos outros que nem mesmo conheço fosse deixado pra trás, de lado, como a aresta de um desenho que se apaga, por não se encaixar na harmonia do todo.
E por que então ele? Por que o estão levando junto a essa turba homogênea como bichos em sacrifício? Será que é isso, será um ritual? Que seita é essa, que receita seguem? Eu tão bem informado e, no entanto, não tenho como dizer... A não ser a voz rouca que brota em ruído grunhindo na minha cabeça e os olhos ávidos por não perdê-lo de vista. Quem sabe o que vai acontecer, queria poder perguntar. Mas talvez seja melhor apenas não dizer. Só segui-lo, ele que não poderia ir embora desse jeito, ele que não pode deixar tudo e a mim como se nada tivesse acontecido (mas nada aconteceu, lembra-se?) ele que...
Então me dei conta de que lentamente maquinalmente funcionalmente entrava no compasso dos outros que me precediam e que me sucediam. Não vejo mais diferença entre o que está antes ou depois de mim: só o instante tem sentido; só o momento existe. E de repente, como se nessa completa falta de sentido eu encontrasse algo como uma partitura quebrada, incompleta e avessa, flutuando, cindida do signo das coisas: eu enviesadamente compreendo, a minha visão se turva, e eu sinto que cada vez mais faço parte, e que eu sou na verdade aquilo que menos sei, e que saber-se a si próprio é só a pontinha de um enorme iceberg que se lambe com gosto de morangos mofados, e a língua gruda, e não se fala mais: porque não se precisa mais falar.
Comunico-me pelo sentido da coisa, a coisa inominada e inominável que compõe e decompõe tudo e nada e a própria coisa, essa coisa que neutraliza a minha busca numa calma, numa paz serena, numa glória de luz distante, no horizonte que nunca chega, porque nunca chega, nunca se chega. Natural perceber agora que os outros na verdade são ele, todos outros, todos ele, e que ele na verdade sou eu, e que eu na verdade sou ele, e que sempre foi assim, porque nunca foi diferente; é natural que não os conhecesse, e ainda mais natural que não o conheça senão na medida em que me conhecia, por isso a indiferença que criei e que mantive por tanto tempo, nas minhas certezas enfáticas, nas minhas palavras escritas, na minha voz rouca e suave e cortante.
Natural ser na mudez do passo marcado que se descortina a mim a minha liberdade que me funde e que me finda...

- música do post: "strawberry fields forever", The Beatles

10.1.11

primogênito

...sentiu as dores do mundo e soube que naquele dia, sem atrasos, é que deveria ser feito. O labirinto não oferecia escolhas; os caminhos, entrecruzados, perdiam-se na velocidade do líquido parcialmente viscoso escorrendo-lhe pernas abaixo. Mesmo assim, tentou desesperadamente fugir de seu destino.
Quis gritar, pedir ajuda aos céus, mas a providência divina de nada adiantaria em meio às sombras de que escolheu fazer parte. Voluntária da própria desgraça, adivinhava no musgo das paredes de pedra mensagens ocultas aos olhos alheios. Estava perdida e grávida num mundo de objeções. A escolha sensata jamais no repertório da mulher, por isso jamais vencida. A derrota, no entanto, impunha-se sorrindo enigmática e paralela ao caminho que deveria ter seguido.
Aquele, o da insistência daquela mulher, apenas a levaria ao fundo de seu juízo final, sob o jugo da luz lunar que a iluminava nos gritos lancinantes. Ninguém a ouvia, e ninguém a poderia ouvir, num labirinto não há qualquer chance de resposta. A voz que ressoava, se não esquizofrênica alucinação, era eco da voz que emitia, sons guturais e patéticos de sua desvalia materna.
Sabia que aquela era a hora, e que se parasse seria inevitável o parto, e que, sendo assim, teria de dar tudo de si àquela massa amorfa que se revolvia em seu interior. E por isso não parava, preferia o incômodo nas entranhas à responsabilidade da criação. A cada curva, a cada esquina, mesmo sem saber, cada vez mais enredada no descaminho labiríntico que pode envolver uma pessoa, a mulher usava todas as forças, suor escorrendo pelo rosto, toda músculos e contrações do mistério que carregava consigo.
Por não querer revelar ali mesmo aquilo de que se sabia invólucro, aquela mulher arrastava-se sempre adiante, mesmo sentindo as pontadas insuportáveis do azar, lancinantes golpes de um jogo macabro. Contudo não se pode adiar o inevitável, e então, consciente da derrota iminente, escorregou na própria matéria que expelia: um líquido cada vez mais viscoso, fétido, sanguinolento, sede de conquista. Em volta, muros cada vez mais altos, sem chance de redenção, insetos nojentos percorrendo a pele melada de suor. Na boca, a baba grossa de um esforço que encontrava o final de suas forças.
No centro de Creta, aquela mulher expulsou de si, contra todas as vontades internas, um ser de aparência terrível, o corpo tomado de grossas camadas de pelos revoltos, afiados espinhos espalhados pelo corpo disforme, algo como uma pequenina besta, os olhos muito pretos, luzidios, as patas de cascos firmes procurando terreno naquela umidade mofada.
Estando de pé, aprendizado que lhe parecia inato, a nova criatura encarou de perto o terror da genitora pra sempre vencida e, aproveitando-se do anonimato, alimentou-se de suas entranhas recém-descobertas, faminto de carne, carente de alma. Se alguém houvesse, de longe poderia notar o uivo, satisfeito, vingado, mas tarde demais pra qualquer atitude. Encontrou facilmente a saída, seguro de suas futuras posses, embalado pela conquista de novas presas. Tácito, confundia-se com a natureza, conosco, com o que de pior se pode gerar dentro de cada um de nós...

- música do post: "wrong", Depeche Mode