31.12.08

odoyá

"Quando eu morrer voltarei para buscar
os instantes que não vivi junto do mar"
Sophia de Mello Breyner


Clara brincava na praia quando olhou a concha na areia, ali junto. Diziam-lhe que se a colocasse ao ouvido ouviria o barulho do mar distante. Assim o fez, enquanto pequenas marolas tentavam, em vão, tocar-lhe os vítreos pés. Agachada, o vestido rendado a chasquear os grãos da areia úmida, percebeu que os sons formavam como que lamúrias entregues ao nada. Talvez fosse a escolhida a captá-los e, quem sabe, tomar alguma atitude. Mas o quê?
Clara não compreendia as minúcias daquilo que lhe chegava tão docemente. Porque sim, o lamento era doce, e a voz do mar, apesar dos gritos salgados das ondas furiosas, cochichava qualquer coisa de íntimo que ia além de toda razão possível. Estar à deriva em meio à praia deserta proporcionava-lhe uma sensação única; o contato com o lado selvagem do mundo, seus segredos e códigos indizíveis, fazia com que se soubesse apenas parte minúscula do todo que chamam de universo, apenas mais um conjunto de fragmentos que se unem por determinado propósito.
Será, então, que era isso que deveria entender? Alcançar os detalhes do cume da evolução? Trilhando os meandros da cosmogonia, Clara corria o risco de se descobrir a si mesma. Inserida no contexto de uma revelação, a epifania desvelava-se por seus sentidos afora, desdobrando-se em sensações múltiplas e conflitantes, sinestesia de um corpo que se revela por inteiro ao espírito das coisas. A comunicação, portanto, parecia estabelecer-se. Através daquele objeto de formas engraçadas, delicada ruína de sedimentos, podia-se entrever que o momento de tensão máxima se aproximava.Clara, porém, não se dava conta disso, fascinada pelo descobrimento de realidades outras que se lha apresentavam. O choro do mar era pura solidão. Desarmada dos escudos da experiência como ser humano, restava toda aberta, braços dados com a consciência plena que a unia à natureza. Os ruídos de antes cessaram por completo. Não havia mais motivos para perdurarem. Substituídos por cânticos, encantadores tais como os de sereias, Clara foi levada a mergulhar cada vez mais fundo, até seus pés não tocarem a areia úmida de outrora, até suas mãos debaterem-se na agonia da concha perdida para sempre, até que ela por inteiro, embebida na maresia inebriante, desaparecesse na brincadeira macabra de existir.

*******

...pois é, voltei. Não sei o porquê, não sei até quando... mas também não sei se vale a pena ficar indagando razões que provavelmente nunca terei. Não importa. Enfim, só o que sei é que não quero fazer promessas para o próximo ano. Que 2009 venha, e que seja melhor que este ano a nos deixar a um minuto da meia-noite, a um passo apenas do precipício. Desejo a todos uma tranqüila e boa passagem; como oferenda, ofereço esse conto aos novos tempos, sacrifício necessário às inerentes mudanças da vida. A partir de amanhã visito todos vocês. Saudades. E bem-vindos novamente a esse inacreditável mundo em que espero permanecer...

- música do post: "Iemanjá rainha do mar", Maria Bethânia