25.2.09

fim d festa

"As possibilidades de felicidade
são egoístas, meu amor"
Cazuza
...o bloco passava e o suor do ritmo levava as gentes, enquanto apenas ele, Pierrô, parecia perdido no meio da massa festiva, contraponto necessário à alegria indomada que invade as almas em fevereiro. Mês canhestro, menos dias mesmo quando bissexto – de lua, sempre desconfiada, pronta para dar o bote nos amantes distraídos. Pois ia o bloco, tarde caindo, esmaecendo de cores o horizonte fatigado da bagunça de todo o dia. Pierrô amolecido e uma lágrima rolando coração adentro, já que solidão não se engana com máscaras de plástico nem se cura com sorrisos forçados.
Já desistia de qualquer festejo, o Pierrô, certo de que tristeza não se dá a estripulias, quando, de repente, a Odalisca do outro lado da rua hipnotizou-o com olhos de sherazade, prometendo-lhe as mil e uma noites que todo coração deseja ao partir-se por amor desfeito. Acreditando nas promessas da súbita aparição, Pierrô largou-se à sorte que só uma paixão pode gerar, pulando e arrulhando como se a festa somente a partir daquele instante começasse.A Odalisca seguia em frente com seus passos sensuais, desbravando braços e pernas pelo caminho como fosse a própria cobra a abrir passagem para o Paraíso. Chegando a uma viela escura, puxou-o a Odalisca para junto de si, fazendo com que bebesse do néctar divino e adivinhasse suas curvas por debaixo da transparência que a fantasia deixava entrever. Pobre Pierrô que, tomado pelo susto das ilusões, esqueceu-se de que amor de carnaval acaba quando menos se espera, assim como chega a quarta-feira de cinzas no melhor da folia: antevendo a sensação do gozo, nem notou quando o canivete rasgou-lhe as entranhas de lado a lado, senão que a dor foi insuportável para sequer terminar o último beijo. A noite caía, o carnaval chegava ao fim e, com ele, a realidade que nada tem de carnavalesca, na qual as fantasias são ainda menos óbvias. Na carteira havia duzentos reais. O restante a Odalisca jogou na calçada, enquanto sorria, cúmplice, para a lua...
- música do post: "todo carnaval tem seu fim", Los hermanos

19.2.09

dsaniversário

...não é apenas uma questão de ficar mais velho. Apesar disso, não sei bem por que não gosto de comemorar aniversário. O meu, porque das festas dos outros gosto e muito. Quando vai se aproximando a data, quando já não restam tantas folhas a arrancar ou riscar no calendário, começo a ficar meio tenso, preocupado, inclusive me distraio das coisas que tenho de fazer. Ah, sim, é verdade, me esqueci de dizer: fiz aniversário por esses dias. Só não me peçam pra dizer o dia certinho, coisa e tals, pois que nem consigo. Melhor dizendo: não gosto mesmo (quanto a idade não tenho o menor problema. É só me perguntar, quem quiser saber... será que alguém gostaria de saber??? rs...). Sei lá, eu penso que todo mundo devia ter o direito de não curtir essas comemorações anuais da data do nascimento, assim como todo mundo deveria ter o mesmo direito de não curtir, também, carnaval, futebol e música sertaneja. Afinal de contas, tudo tem dois lados, não? Pois parece que, às vezes, não. Parece crime hediondo e inafiançável não querer celebrar o dia em que nossas mães nos puseram no mundo. Nada contra as mães, muito menos contra a minha, não me entendam mal; só estou aqui defendendo o meu ponto de vista, humilde, chata e insistentemente. Por isso gostaria de propor a todos que passam por esse mundo, da mesma forma como proponho todo ano aos meus amigos, que também tenham o direito ao "desaniversário". É, sei que não é uma ideia nova e muito menos criativa, no entanto, sempre falo sério quando trato disso. Se por algum motivo você também não curte festinhas de níver no seu níver – ou se simplesmente nesse ou naquele ano x, y ou z você não estiver afim de comemorar patavinas alguma –, defenda e exija o seu direito ao desaniversário. Pode até parecer uma negação besta, niilismo pós-moderno, que seja. Contudo, pra mim, é apenas uma questão de gosto. E gosto, como todos nós sabemos, não se discute, não é mesmo?...

- música do post: “the way we were”, Barbra Streisand

14.2.09

galak

...ela tinha de ir. Era a única certeza que possuía no momento – ou talvez em toda a vida. Alguns passos apenas e a calçada cinza à frente. Ela mesma toda cinza, necessidade de afirmação, como se o sol não estivesse ali, a seu dispor, mas ardente, a ardê-la toda. Cabeça aos pés, pele queimada, alma pálida. Nos olhos o vislumbrar do porvir. Excitação madura, ansiedade abafada. Tinha de manter a pose, o foco, afastar um cacho dos cabelos castanhos grudado no suor do rosto suado. Úmido. Lavado de sal. De sol. Ainda ardente, ainda mais. Porém o armazém ali na esquina. Logo logo lá estaria. Apertar o passo não, não precisa. Imprecisa tropeçou, trocando os pés. Quase foi ao chão; o poste perto, exato. Foi por pouco. Panfleto velho: cão desaparecido. Pensamentos fugazes. Não não. Enfoque. Distrações demais. Um segundo sequer é insuportável. Lá dentro pediu: ao mesmo velho de sempre, as mesmas moscas de sempre voejando, as mesmas coisas de sempre, sempre mesmas, sempre coisas, mesmas sempre, coisas sempre... Hein, aqui o dinheiro, fica com o troco. Distraída, saiu. O sol apagou. Apagada estava pra tudo, pra todos, antevendo sensações, qual falsa cigana, bruxa, morgana. Divertiu-se pensando nisso. Passou o pequeníssimo embrulho entre os dedos direitos da mão esquerda. Era a sua maçã envenenada, a sua poção, o elixir de suas angústias. O mundo parou de girar, chineses caíam do teto que não mais azul, mas cinza, tudo cinza, tudo pó. Só ela inteira; ela e o embrulho amarelo indo-embora nas mãos que também se iam com ela toda pra dentro de si mesma, pra um mesmo ponto, energia concentrada, solar lâmpada em formato de noz, apodrecendo de espera. O passo que deu explodiu tudo como o big ben, centelha divina, arranjo cretino que, interruptor, girou a chavinha do mundo que girou todo de novo feito carrossel doido de cavalos selvagens descontrolados potros violentos como o sol que arde. E nesse meio movimento ela se perde toda porque tudo todos foram e ela ficou sem saber por quê, apenas desejando imaginando suplicando a sensação quente derretida doce confortante do embrulho aberto. Olhos bem abertos. Não dela, mas dele. Tentando captar sua essência num sentimento qualquer de estudada satisfação, perscrutando de um gesto cotidiano a fugidia certeza que não mais possui – será que algum dia já a havia possuído? De qualquer forma a afirmação, ou pelo menos a possibilidade desta, ou daquela, ou nenhuma – que seja – se confirme.Mais um passo. Um único uno. Cadafalso. Sobressalto atrasado. Um momento apenas. Relógio atrasado, soluço abafado, choro engolido. Sem tempo pra dor. Cena de horror. Poesia romântica, escapando sempre. Gótica, pontiaguda, como facas de faquir penetrando a pela ardida da ardência do sol escorrendo rubra caudalosa no rio de sangue ensanguentando a cinza calçada, tornando-se rubra em si, saindo-se dela mesma, escoando toda bueiro afora. E o chocolate, branco, puro, imaculado, esmagado no chão. Cheiro doce de cacau queimado pela borracha do carrasco pneu, sorrindo-se de sua inanimada ignorância. E pra sempre a dúvida. A eterna dúvida. Pairando no ar, confundindo-se pura com as impurezas porcas no ar, desfazendo-se em sua própria incerteza de nunca ser. Dúvida...

- música do post: "quizás, quizás, quizás", Maysa

9.2.09

perto d 1 coraçaum selvagem

...acabei de ler recentemente o volume de correspondências de Clarice Lispector, organizado por Teresa Montero para a Rocco em 2002. O que mais me impressionou nesse livro não foram os contatos ilustres que se correspondiam com ela, tais como Lúcio Cardoso, Carlos Drummond de Andrade ou Fernando Sabino, só para ficar em uma pequena parcela de exemplos, e sim a inquietude infinita de alma dessa estrondosa mulher, cujas palavras transbordavam ao mesmo tempo de beleza e comunhão com uma certeza muito interior: a de que a vida não se faz de certezas. Além disso, fiquei alucinado pela “literatura” de suas cartas – muitas podiam perfeitamente se passar por contos ou crônicas, se assim a autora quisesse, o que me fez perceber que o estilo de Clarice era próprio de sua pessoa, ou seja, natural, sem realmente denotar, em minha singela opinião, qualquer traço de afetação romanesca. Tida por muitos como “hermética”, “misteriosa”, “complicada” etcetcetc & muito blábláblá, a dicção literária de Clarice parece ultrapassar tudo isso, pois que não dirigida a um público específico (a não ser pelas cartas, obviamente de cunho remetido...). O que quero dizer é que sinto uma invejinha boa de Clarice Lispector, de ter a sensação, lendo-a, seja através de correspondências ou de sua extensa obra, de estar próximo a um genuíno coração selvagem que não se conformou a uma existência mediana, e que buscou sempre expressar a vida em seus detalhes mais específicos – e por isso preciosos. Também fico com um sentimento de nostalgia do que nunca tive, por mais estranho que isso pareça: sinto falta dessa época em que as pessoas mandavam cartas umas para as outras, num tempo pré-histórico em que internet era mito e, tv, em preto-e-branco. A carta tem todo um charme, todo um tom intimista que a frieza de um e-mail não permite. Está bem, talvez eu esteja sendo um tanto rude com a modernidade, ou mesmo despeitado, mas a saudade satisfeita pela sensação do abrir um envelope devia ser única. E a atenção do manuscrito, pouco a pouco substituído pelo teclado, jamais pode ser esquecida. Para os que ainda resistem a esses argumentos, o principal: se cartas fossem assim tão obsoletas, para que então publicá-las? Ah sim: cadê os meus textos? Achei que podiam esperar mais uns cinco dias... Clarice Lispector merece todo esse post e a minha e vossa atenção...

*******

...reservei um momentinho nesse post para uma mensagem pra lá de especial: queria muito agradecer as palavras de apoio que venho recebendo desde a minha volta a esse mundo. Muito obrigado, o carinho de vocês é mesmo digno de todo agradecimento. E Jaya, querida, o seu efusivo comentário me deixou muito feliz, mesmo num dia em que eu não tava pra sorrisos... Beijo em todos...

*******

...outro “à parte”, mas igualmente merecido: faria 100 (!) anos hoje a nossa Pequena Notável. Digo “nossa” porque Carmen Miranda foi brasileira até o último cacho de bananas, e também é uma das mais admiradas e respeitadas artistas brasileiras de todos os tempos e assim o será pra sempre, espero eu. Ter nascido em Portugal foi um mero detalhe, mais um entre tantos na vida e carreira dessa outra grande mulher do nosso país, e de quem nos devemos orgulhar. Hoje tão em moda, a sandália plataforma foi invenção sua. Essa e outras tantas peças do acervo de Carmen estão em permanente exposição no Museu Carmen Miranda, que fica no Parque do Flamengo, em frente ao número 560, aqui no Rio. Vale a pena conferir...

- música do post: “reconvexo”, Maria Bethânia

4.2.09

fundo d gaveta

...tenho lido bastante ultimamente. E pra mim isso tem sido novidade. Andava meio enjoado e de mal com a literatura, qualquer que fosse. No momento tenho devorado o que me cai no colo, costurando um texto n’outro e com vontade de retomar os meus próprios, talvez mais como exercício de estilo do que realização literária, o que há muito não encontro. E por que tô aqui dizendo isso? Sei lá, mas me deu uma vontade assim enorme de desabafar hoje... Desculpem-me, verdade seja dita, já que de mentira já bastam as que a gente conta pra gente mesmo o tempo todo né não? De modo que, por isso, acho que posso me fazer um desafio: em breve voltarei a postar nesse mundo um texto ficcional, digo, ficcional no sentido “literário” mesmo da coisa. Bom, o quanto de literatura terá eu não sei. Entretanto, quero muito acreditar que pelo menos um tiquinho terá (nem que pra isso eu tenha de me enganar um pouquinho. Afinal de contas, pra que servem as exceções às regras, hein?). Agora sério: de fato é muito difícil estar assim há tanto tempo sem escrever. Acho que, pra quem escreve, isso é mais do que claro, compreensível quanto aquele soninho que dá depois que a gente almoça. Dá uma dor, vai subindo uma coisa que cresce por dentro da gente até o momento em que se força a regurgitar-se, do jeito que estiver, seja como for. E é justamente essa espécie de comichão que eu venho sentindo nos últimos dias. Essa espécie de “não-sei-o-quê” que vai remexendo tudo por dentro e exigindo, demandando um espaço todo seu e que eu finjo não notar. Não dá mais. E talvez eu saiba o porquê de tanto esconde-esconde: é que escrever é um ato egoísta, tão egoísta que chega a ser altruísta... É paradoxal, mas é isso: escrever é o ato egoísta mais altruísta que há. E isso porque ninguém quer ser lido pelas traças, ou seja: escrever direto pro fundo da gaveta. O produto da escrita é, per si, destinado ao outro, mas o escrever em si necessita de um não dar-se muito corajoso; por isso escrever é, também, um ato de extrema coragem. Coragem de se voltar as costas para os demais e encarar-se a si mesmo. Quem faz isso sabe o quanto dá medo, o quanto se sofre, o quanto verdadeiramente dói. E eu andei tão covarde e com medo de mim nesses últimos meses... Enfim, o desafio está feito, a cabeça erguida e o cursor piscando de ansiedade. O que virá? Ainda não sei, mas que não será lido pelas traças, ah, não será não...

- música do post: “tente outra vez”, Raul Seixas