...Elisa salivava à lembrança da salada de frutas feita pela mãe no dia anterior. Ainda podia sentir o sabor que adquiriam todas aquelas frutas juntas, aos pedaços, identidade perdida em prol do conjunto. Claro que nisso não pensava, criança que era. A repentina ideia que teve foi a de ir até a cozinha e pegar um pouco, só um pouco, assim, sem ninguém ver, pois a hora do almoço já se aproximava. Soubessem o que faria, certamente lhe negariam um tantinho que fosse a satisfação de seu desejo.
Ainda à porta, observou para ver se sombra havia, ou barulho qualquer, rumor de passos, sequer. Nada percebeu, o que aumentou a coragem e fez com que se adiantasse até o refrigerador. Pegou do grande vasilhame acrílico transparente, e, com destreza felina, removeu o papel-filme que protegia a sobremesa. Sentiu o aroma gostoso exalando e por pouco não se distraiu de todo, já que o que fazia era por debaixo das vistas. Tomou uma tigela da pia e tocou a enchê-la a colheradas do doce, ao que notou ser a ação por demais trabalhosa, terminando por comer do próprio vasilhame.
Satisfeita a gula, sobreveio a culpa – apesar de pequena no tamanho, frequentava Elisa a noção do pecado através das aulas para a primeira comunhão. Limpando a boca nas mangas do vestidinho rosado, tratou de esconder a colher, arma do crime, por dentro da roupa, e de repor o papel-filme, meio desajeitadamente, e o vasilhame no mesmo lugar de antes.
Só não contava Elisa que o destino, caprichoso como só os novelos mais enrolados podem ser, desfiou-lhe um súbito acontecimento: à hora do almoço, não se sabe se por nervosismo ou pela quantidade de açúcar consumido às pressas, teve desarranjo intestinal. Além disso, a arrumadeira, moça jovem e pronta para o serviço, ao varrer debaixo da cama da pequena, topou justamente com a colher que faltava no porta-talheres, motivo pelo qual se indispôs a patroa com a cozinheira. Tomada de formigas envoltas em um minúsculo pedaço de mamão murcho, veio à tona o que o silêncio de Elisa não ousou dizer.
Naquele dia não lhe contaram nada, pois que não faz bem angustiar os enfermos. No seguinte, contudo, já refeita, foi a própria mãe que lhe comunicou a descoberta e o castigo: a partir daquele dia e pelos próximos quinze, Elisa não deixaria a mesa do almoço ou jantar sem antes comer uma taça transbordando de salada de frutas, a fim de pagar perversamente pela travessura. Concordando os deuses com a decisão soberana da mãe de Elisa, a menina não passou mal do intestino um dia que fosse da sentença. Passado o prazo, Elisa continuou fazendo das suas e sendo castigada, porém nunca mais quis saber de salada de frutas...
- música do post: "ovelha negra", Rita Lee
27.3.09
21.3.09
cuba libre
...sobre a cama os comprimidos espalhados denunciavam o ato em seguida. Abriu a boca e engoliu logo cinco, ajudado pelo cuba que preparara com tanto cuidado. Dessa vez com coca-cola mesmo, pelo menos agora, nem que fosse só agora, tinha de fazer algo certo nessa vida. Outros seis foram sem esforço, goles grandes, rápidos, ávidos da certeza de antes, planejada com todos os detalhes aquarianos. Um leve torpor. Da bebida, talvez, mistura inexata ressoando a álcool em demasia. Nunca fora inteligente mesmo, nunca prestara pra química, e um riso histérico cuspiu metade de uma daquelas pequeninas rodelas cor-de-burro-quando-foge. Se até o burro foge, pensou. Química, também pensou, e ao riso misturou-se um choro profundo, calado de tantos anos de erosão interna. E nem eram tantos assim, mas pesavam como se fossem. Porque pesa, sabe, carregar essa coisa que vai curvando a gente a ponto de dobrar a coluna, de fazer com que a gente encare o chão como a única perspectiva possível. O chão ou isso, e olha pro copo vazio de cuba, daqueles enfeitados, de requeijão. O torpor aumenta. Pra empurrar o restante usa a vodca mesmo (rum tava caro demais), pura, e das boas, havia raspado do resto de suas economias o pouco praquilo: não se sabe se foi antes ou depois de tomar a penúltima partícula do que considerava ser a promessa própria de um happy ending possível, que o braço direito pendeu e o copo saiu rolando pelo tapete vagabundo da quitinete...
- música do post: "21st century kid", Jamie Cullum
- música do post: "21st century kid", Jamie Cullum
15.3.09
1 tard qualquer
...na sacada, a caneca de chocolate quente fumegava em plena tarde fria. Ainda não havia se acostumado... muito doce, achava. Melhor do que ficar sem nada, no entanto. Café não podia mais, ordens médicas. A vida não podia mais, pensou, bestamente filosofando coisas sem sentido. Havia se prometido parar de fumar, promessa velha e difícil de cumprir. Afinal, em que muleta se apoiaria quando acontecesse de novo? E sempre acontecia. Acontecia porque era o tipo de pessoa que não consegue se controlar, engolir sapos e ficar de esguelha, esperando o momento ideal. Agir é tão difícil. Preferia ficar assim, na solidão de uma tarde qualquer, nem alegre nem triste, adivinhando formatos de nuvens e amontoando compromissos para outra hora.
O telefone tocou o dia inteiro e não atendeu. Fugia, não queria enfrentar qualquer mudança súbita de tom. Ao mesmo tempo, sabia que esse modo de ser não poderia durar indefinidamente. Por isso, ou por qualquer outra razão que agora não vem ao caso, tirou o gancho do aparelho quando o próprio ruído soava rouco pela insistência. Era daqueles velhos, tipo telebrás, indestrutível, disseram-lhe no brechó – e preto. Achou um charme esse ar meio espartano; e o preço também.
- E aí? Achei que tinha morrido. Liguei tantas vezes nesses últimos dias.
- Uhum...
- Queria saber como você tá. Por que não manda notícias? Cê sabe que me preocupo.
- Uhum... é, eu sei. Desculpa, né nada contigo não... Sou eu, é sempre comigo mesmo...
- A mesma estória. Sabe, tá difícil continuar assim. Parece que a gente não combina mais, que a gente não se entende. Acho que não custa nada cê me dar um pouco mais de atenção, poxa. Eu cuido de tudo pra você!
- Você não sabe o quanto me custa...
- O quê? O que que cê disse? Fala mais alto que eu não te escuto.
- Deixa pra lá, você nunca vai saber o quanto me custa...
- Ahn? Ninguém merece esse teu telefone velho, hein. Fala mais alto, pô! Alô? Alô? Cê ainda tá aí?
O clique talvez tenha sido a resposta mais curta e audível que poderia dar. Nem mesmo a voz saía como desejava. Não tinha mais forças para lidar com tudo aquilo. Os papéis sobre a mesa que pediam organização. Os poemas que tinha de organizar para a coletânea, as provas de outro trabalho... Todo mundo dizia que era normal, que era assim mesmo, “coisa de artista”, uma hora passa, e já não sabia há quantas horas esperava a solução mágica.
Aqueles versos, os versos que havia escrito e que nunca seriam publicados. A indecência do ser, um bom título, achou, mas a ideia acabou rejeitada de um jeito vago, enquanto sorvia os últimos goles do chocolate já frio. Sedimentando no fundo da caneca branca, atentou para dentro de si com a certeza de que o telefone tocaria tantas e tantas outras vezes, e de que a vida não valia a pena pela poesia. No vigésimo toque de semanas depois, esqueceram-se dos contratos e convenções, e enfim desconfiaram do óbvio...
- música do post: "lacho", Omara Portuondo
O telefone tocou o dia inteiro e não atendeu. Fugia, não queria enfrentar qualquer mudança súbita de tom. Ao mesmo tempo, sabia que esse modo de ser não poderia durar indefinidamente. Por isso, ou por qualquer outra razão que agora não vem ao caso, tirou o gancho do aparelho quando o próprio ruído soava rouco pela insistência. Era daqueles velhos, tipo telebrás, indestrutível, disseram-lhe no brechó – e preto. Achou um charme esse ar meio espartano; e o preço também.
- E aí? Achei que tinha morrido. Liguei tantas vezes nesses últimos dias.
- Uhum...
- Queria saber como você tá. Por que não manda notícias? Cê sabe que me preocupo.
- Uhum... é, eu sei. Desculpa, né nada contigo não... Sou eu, é sempre comigo mesmo...
- A mesma estória. Sabe, tá difícil continuar assim. Parece que a gente não combina mais, que a gente não se entende. Acho que não custa nada cê me dar um pouco mais de atenção, poxa. Eu cuido de tudo pra você!
- Você não sabe o quanto me custa...
- O quê? O que que cê disse? Fala mais alto que eu não te escuto.
- Deixa pra lá, você nunca vai saber o quanto me custa...
- Ahn? Ninguém merece esse teu telefone velho, hein. Fala mais alto, pô! Alô? Alô? Cê ainda tá aí?
O clique talvez tenha sido a resposta mais curta e audível que poderia dar. Nem mesmo a voz saía como desejava. Não tinha mais forças para lidar com tudo aquilo. Os papéis sobre a mesa que pediam organização. Os poemas que tinha de organizar para a coletânea, as provas de outro trabalho... Todo mundo dizia que era normal, que era assim mesmo, “coisa de artista”, uma hora passa, e já não sabia há quantas horas esperava a solução mágica.
Aqueles versos, os versos que havia escrito e que nunca seriam publicados. A indecência do ser, um bom título, achou, mas a ideia acabou rejeitada de um jeito vago, enquanto sorvia os últimos goles do chocolate já frio. Sedimentando no fundo da caneca branca, atentou para dentro de si com a certeza de que o telefone tocaria tantas e tantas outras vezes, e de que a vida não valia a pena pela poesia. No vigésimo toque de semanas depois, esqueceram-se dos contratos e convenções, e enfim desconfiaram do óbvio...
- música do post: "lacho", Omara Portuondo
9.3.09
mariazinha
...Mariazinha nascera pra ser pobre: era feia e necessitada. Feia por ser necessitada, já que sempre lhe disseram que a necessidade é feia. Na verdade seria rude, pra dizer o mínimo, falar assim de Mariazinha. Porém aqui nada se inventa, muito pelo contrário: era assim mesmo que ela mesma se via.
Acordava cedo, trabalhadora que era. Pegava dois ônibus, uma linha de metrô e mais dez estações de trem, além de uma boa caminhada de meia-hora até o serviço: pesado, insalubre, interminável. Mas isso sou eu quem diz: Mariazinha não diz nem reclama de nada, nunca reclamou. Mariazinha nascera pra ser santa. Mas demora, então não. Porque ela tem mais o que fazer.
Mariazinha vivia sozinha. E diz-se “vivia” com toda a propriedade do termo, pois não tinha pai, mãe, irmãos ou marido. Pra falar a verdade, nem nunca namorado teve. Era religiosa. Ninguém sabia de sua história de vida. Aliás, mal sabiam que “vivia”. Quanto mais de sua história. Sozinha.
Mas num dia qualquer: Aconteceu. Descendo do segundo ônibus encaminhando-se para a estação de metrô apressada pra não perder o trem pra não ter de andar ainda mais rápido por causa do seu serviço pesado insalubre interminável de repente estancou: um carro veio em sua direção e ela não o vira. Quase foi atropelada. Coração a mil em poucos segundos. Ainda foi xingada pelo motorista. Palavras de baixo calão. Fez questão de não entendê-las. Mariazinha nascera pra ser pura. Finalmente o viu: de início não compreendeu – achou que era pecado; então não deu importância. Afinal, tinha de manter a sua pureza intacta.
Pegou-o. Estava sujo da lama da chuva do dia anterior. Nem precisou conferir até o final: estava premiado. Estava ela mesma premiada. O bilhete lhe conferia o ingresso a um mundo totalmente novo e desconhecido. Nem sabia o que fazer com tanto dinheiro. Sabia apenas que o possuía. Mariazinha possuía o bilhete que por sua vez a possuía. Primeiro namorado. Primeiro beijo. Primeiro orgasmo. Primeiro prazer. Primeiro. Gemeu baixinho com medo de assustar-se a si própria em seu novo território. Ela-mesma. Antes disso “vivia”. Agora vivia. Sem aspas. E lhe bastava, pois a liberdade foi tamanha que:
Correu como potro livre-leve-solto numa pradaria toda verde e plana e ininterrupta como seus cabelos-crina agora também soltos na felicidade fácil que brotara dela toda. De face corada chegou ao banco, o vestido de chita manchado do sangue de sua recém perdida virgindade. E então trocou aquele pedaço de papel enlameado de mundo e de pecado por um monte de papel ainda mais enlameado de mundo e de pecado, entrada livre que tinha agora entre Céu e Inferno. Aliás, podia ter dos dois se quisesse. E queria, caftina que se tornara em meio à sua própria mutação. Sentia-se plena, realizada, prostituída de bem e de mal. Era a vida, finalmente a vida. Mariazinha era mulher da vida.
Não voltou mais nunca mais ao barraco onde morava. Aliás, já nem mais se lembrava de que um dia ali morara. Também nunca mais dois ônibus uma linha de metrô e dez estações de trem além de uma boa caminhada de meia-hora até o serviço. Que serviço? Pesado insalubre interminável??? Never!!! Mariazinha agora fala inglês fluente através de seu tradutor, Robert Robertson, pois agora só compra onde se tenha de falar obrigatoriamente em inglês. Quanto ao resto? Bem, dois Mercedes na garagem e um motorista chamado Jean-Luc, além de adquirir uma linha de metrô e dez estações de trem. Só porque não tinha mais o que fazer com o seu tempo livre, livre que era. Mariazinha era mulher livre. Aliás, já nem era mais “Mariazinha”: chamava-se Little Mary, assim em inglês, assim em itálico, que era mais fashion. Contratou alguém até pra assinar o seu novo nome por ela, já que não sabia escrever nem em português. Ah, também era Róberti (como ela o chamava e sem sobrenome mesmo, que isso ela não acertava fosse como fosse) quem pronunciava o seu novo nome, porque assim era mais bonito... (mentira dela, que mal conseguia dizer 33 ao médico, quanto mais Little Mary).
Vocês podem notar que eu não tenho mais pena de Mariazinha (recuso-me a falar e/ou escrever o seu novo pseudonome novamente), se é que mesmo algum dia tive. Creio que é apenas mais uma de minhas personagens que saiu de prumo e perdi o controle. Talvez por tê-la criado tão ingênua e tê-la solto em tão mundo cão como o meu, o seu, o nosso, mas que não o dela. Se eu não tivesse posto aquele bilhete naquele lugar... E se eu não tivesse posto aquele bilhete naquele lugar? Besteira pensar nisso agora. Aconteceria do mesmo jeito. As coisas são como elas são. E cada um sabe de si. Ou pelo menos deveria. Senão quem? Ninguém.
É, Mariazinha não sabia de si e eu, que podia saber dela por ela não poder, não quis. Achei que seria melhor assim. Sem pai nem mãe nem irmãos nem marido. Nem namorado. Virgem que era de si-mesma para si-mesma e para tudo-nada. Mas então o bilhete. O ingresso que a levou para o mundo e a tirou definitivamente de mim. Enquanto aqui divago essas besteiras com vocês, Mariazinha se diverte em sua sábia ignorância de gente que tem todo o tempo do mundo nas mãos, que pode muito bem manipular a fortuna como bem quiser, desafiar Cronos, Zeus, a mitologia inteira e o diabo que te carregue!!! A mesma (ou talvez outra) que outro dia de manhã rezava dois padres-nossos e uma ave-maria tomando o cuidado de não errar que era pra dar sempre a mesma soma: três: trindade: em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém. Agora não, nunca mais. Olha lá, entupindo-se de chocolates da Bavária, caviar dinamarquês, vinho italiano, Chanel da cabeça aos pés, sex drugs & rock’n’roll, baby...
Não, chega, isso já foi longe demais. Mariazinha tem agora tradutores de árabe até o último dos dialetos que se fala nos confins do Zimbábue. Possui todas as riquezas e pobrezas do mundo inteiro, porém não é dona de nada. Nem de si-mesma. Muito menos de si-mesma e de tudo o que compra por falta de tempo porque esse ela já gastou todinho mas quer mais por falta de espaço que, aliás, também já é todo seu: mundo, Via-Láctea, o cosmos inteiro e aos pedaços: universo: Big Ben. Vácuo. Isso era o que era: vácuo. Mariazinha era puro vácuo.
Ah, quer saber, cansei-me dessa estória, até porque não mais me restou espaço pra nada. Pra falar a verdade, nessa estória tudo não me resta mais: Mariazinha possui. Qualquer coisa tem a marca do pecado enlameado num bilhete escondido numa sarjeta quando foi quase atropelada por um carro cujo dono lhe disse palavras de baixo calão. Agora ela entendia. Fazia questão. Uma vez que possuía tudo e nada.
Mariazinha nascera pra ser rica: era feia e necessitada. Necessitada por ser feia. Por dentro. E por fora também. Dizem que ela lembra muito a Marilyn Monroe. Concordo. Não se pode ter tudo, afinal de contas...
Acordava cedo, trabalhadora que era. Pegava dois ônibus, uma linha de metrô e mais dez estações de trem, além de uma boa caminhada de meia-hora até o serviço: pesado, insalubre, interminável. Mas isso sou eu quem diz: Mariazinha não diz nem reclama de nada, nunca reclamou. Mariazinha nascera pra ser santa. Mas demora, então não. Porque ela tem mais o que fazer.
Mariazinha vivia sozinha. E diz-se “vivia” com toda a propriedade do termo, pois não tinha pai, mãe, irmãos ou marido. Pra falar a verdade, nem nunca namorado teve. Era religiosa. Ninguém sabia de sua história de vida. Aliás, mal sabiam que “vivia”. Quanto mais de sua história. Sozinha.
Mas num dia qualquer: Aconteceu. Descendo do segundo ônibus encaminhando-se para a estação de metrô apressada pra não perder o trem pra não ter de andar ainda mais rápido por causa do seu serviço pesado insalubre interminável de repente estancou: um carro veio em sua direção e ela não o vira. Quase foi atropelada. Coração a mil em poucos segundos. Ainda foi xingada pelo motorista. Palavras de baixo calão. Fez questão de não entendê-las. Mariazinha nascera pra ser pura. Finalmente o viu: de início não compreendeu – achou que era pecado; então não deu importância. Afinal, tinha de manter a sua pureza intacta.
Pegou-o. Estava sujo da lama da chuva do dia anterior. Nem precisou conferir até o final: estava premiado. Estava ela mesma premiada. O bilhete lhe conferia o ingresso a um mundo totalmente novo e desconhecido. Nem sabia o que fazer com tanto dinheiro. Sabia apenas que o possuía. Mariazinha possuía o bilhete que por sua vez a possuía. Primeiro namorado. Primeiro beijo. Primeiro orgasmo. Primeiro prazer. Primeiro. Gemeu baixinho com medo de assustar-se a si própria em seu novo território. Ela-mesma. Antes disso “vivia”. Agora vivia. Sem aspas. E lhe bastava, pois a liberdade foi tamanha que:
Correu como potro livre-leve-solto numa pradaria toda verde e plana e ininterrupta como seus cabelos-crina agora também soltos na felicidade fácil que brotara dela toda. De face corada chegou ao banco, o vestido de chita manchado do sangue de sua recém perdida virgindade. E então trocou aquele pedaço de papel enlameado de mundo e de pecado por um monte de papel ainda mais enlameado de mundo e de pecado, entrada livre que tinha agora entre Céu e Inferno. Aliás, podia ter dos dois se quisesse. E queria, caftina que se tornara em meio à sua própria mutação. Sentia-se plena, realizada, prostituída de bem e de mal. Era a vida, finalmente a vida. Mariazinha era mulher da vida.
Não voltou mais nunca mais ao barraco onde morava. Aliás, já nem mais se lembrava de que um dia ali morara. Também nunca mais dois ônibus uma linha de metrô e dez estações de trem além de uma boa caminhada de meia-hora até o serviço. Que serviço? Pesado insalubre interminável??? Never!!! Mariazinha agora fala inglês fluente através de seu tradutor, Robert Robertson, pois agora só compra onde se tenha de falar obrigatoriamente em inglês. Quanto ao resto? Bem, dois Mercedes na garagem e um motorista chamado Jean-Luc, além de adquirir uma linha de metrô e dez estações de trem. Só porque não tinha mais o que fazer com o seu tempo livre, livre que era. Mariazinha era mulher livre. Aliás, já nem era mais “Mariazinha”: chamava-se Little Mary, assim em inglês, assim em itálico, que era mais fashion. Contratou alguém até pra assinar o seu novo nome por ela, já que não sabia escrever nem em português. Ah, também era Róberti (como ela o chamava e sem sobrenome mesmo, que isso ela não acertava fosse como fosse) quem pronunciava o seu novo nome, porque assim era mais bonito... (mentira dela, que mal conseguia dizer 33 ao médico, quanto mais Little Mary).
Vocês podem notar que eu não tenho mais pena de Mariazinha (recuso-me a falar e/ou escrever o seu novo pseudonome novamente), se é que mesmo algum dia tive. Creio que é apenas mais uma de minhas personagens que saiu de prumo e perdi o controle. Talvez por tê-la criado tão ingênua e tê-la solto em tão mundo cão como o meu, o seu, o nosso, mas que não o dela. Se eu não tivesse posto aquele bilhete naquele lugar... E se eu não tivesse posto aquele bilhete naquele lugar? Besteira pensar nisso agora. Aconteceria do mesmo jeito. As coisas são como elas são. E cada um sabe de si. Ou pelo menos deveria. Senão quem? Ninguém.
É, Mariazinha não sabia de si e eu, que podia saber dela por ela não poder, não quis. Achei que seria melhor assim. Sem pai nem mãe nem irmãos nem marido. Nem namorado. Virgem que era de si-mesma para si-mesma e para tudo-nada. Mas então o bilhete. O ingresso que a levou para o mundo e a tirou definitivamente de mim. Enquanto aqui divago essas besteiras com vocês, Mariazinha se diverte em sua sábia ignorância de gente que tem todo o tempo do mundo nas mãos, que pode muito bem manipular a fortuna como bem quiser, desafiar Cronos, Zeus, a mitologia inteira e o diabo que te carregue!!! A mesma (ou talvez outra) que outro dia de manhã rezava dois padres-nossos e uma ave-maria tomando o cuidado de não errar que era pra dar sempre a mesma soma: três: trindade: em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém. Agora não, nunca mais. Olha lá, entupindo-se de chocolates da Bavária, caviar dinamarquês, vinho italiano, Chanel da cabeça aos pés, sex drugs & rock’n’roll, baby...
Não, chega, isso já foi longe demais. Mariazinha tem agora tradutores de árabe até o último dos dialetos que se fala nos confins do Zimbábue. Possui todas as riquezas e pobrezas do mundo inteiro, porém não é dona de nada. Nem de si-mesma. Muito menos de si-mesma e de tudo o que compra por falta de tempo porque esse ela já gastou todinho mas quer mais por falta de espaço que, aliás, também já é todo seu: mundo, Via-Láctea, o cosmos inteiro e aos pedaços: universo: Big Ben. Vácuo. Isso era o que era: vácuo. Mariazinha era puro vácuo.
Ah, quer saber, cansei-me dessa estória, até porque não mais me restou espaço pra nada. Pra falar a verdade, nessa estória tudo não me resta mais: Mariazinha possui. Qualquer coisa tem a marca do pecado enlameado num bilhete escondido numa sarjeta quando foi quase atropelada por um carro cujo dono lhe disse palavras de baixo calão. Agora ela entendia. Fazia questão. Uma vez que possuía tudo e nada.
Mariazinha nascera pra ser rica: era feia e necessitada. Necessitada por ser feia. Por dentro. E por fora também. Dizem que ela lembra muito a Marilyn Monroe. Concordo. Não se pode ter tudo, afinal de contas...
livremente inspirado em Macabéa, personagem de Clarice Lispector
- música do post: "lapinha", Elis Regina
3.3.09
pla metad das chances
...foi só quando percebeu que faltavam outros dois dentes da gengiva de baixo, mascando gosto de sangue pisado, que tomou a decisão de sair do meio da merda do cubículo onde estava, todo sujo, molambo trapo esfarrapado de si mesmo, cheiro de bicho doente, futum de desgraça no ar, desprezo dos outros - pelos outros -, acabou assim, vendido, calças arriadas, objeto quebrado, esparramado e suplicante de um pouco mais de ilusão, o que lhe resta até o próximo beco, até que o juízo, final, condescendente, lance-o de vez no abismo de seus piores pesadelos...
- música do post: "lover, you should've come over", Jamie Cullum
- música do post: "lover, you should've come over", Jamie Cullum
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