10.4.08

aquele homem

...ali pelo início das tardes de sábado é que o espetáculo começava. Depois de pôr o avental encardido de anos de labuta e estalar todos os dedos da mão, dedos nodosos e respeitados em toda a vila, depois disso faltava apenas ajeitar os longos fios de um cabelo negro anunciando sua futura partida em entradas já definidas.
No entanto, era moço ainda, o que lhe dava status até maior pelos seus feitos. Não, ele não era uma espécie de lutador ou coisa do tipo, pois, quando se trata de um, obviamente se pensa em seu adversário. Nesse específico caso, o desse moço com entradas já nítidas em seu couro cabeludo tomado de caspa, ele não tinha adversários. Sua profissão: assassino de galinhas.
Muito requisitado naquela tarde, apressava-se para cumprir o seu último compromisso do dia. Havia um último animal a aniquilar, havia o almoço de sábado cacarejando no quintal da mulher do padre. Então foi.
O ar pesava em suas narinas, o que transmitia a seus passos um certo ar de autoridade. Temido pelas crianças, cujos pais de cabeça quente lhes prometiam o mesmo destino reservado às pobres penosas, era também respeitado pelos homens da vila, pois que aquele outro ser dotado de testosterona ativa aliviava o fardo da masculinidade que tinham de carregar. O ato abjeto mas necessário de matar por sobrevivência, pressuposto da lei do mais forte, era desse modo não só transformado em ofício como regulamentado – era de direito. E também porque nem todos os homens eram de fato homens para tal função.
De todo jeito, frente a frente à sua vítima, o bico amarelo do animal encontrou a face parda do homem. Não acontecera como das outras vezes. Aquela galinha era diferente das outras. E ele notara. Em geral todas o temiam desde o momento em que cravava seus olhos de gavião em sua plumagem delicada, rasgando a tenra carne e manchando-as com seu próprio sangue. Mas aquela galinha não quis ser maculada, pior, não dava a menor importância ao fato de que seria, ainda virgem, sacrificada. O ritual era antigo, apesar de ela não ter consciência disso. As galinhas não têm consciência, daí não pecarem. Mas era assim que tinha de ser. De qualquer maneira, saiu ciscando pelo terreno sem dar atenção maior ao homem, cujos olhos ficaram vesgos por um instante. Teriam aquelas duas lâminas perdido o fio de corte? Não, foi algo muito mais profundo.
De alguma maneira foi transmitido ao homem o fato essencial de que nunca havia se dado conta. A inocência daquela galinha engolindo milhos de uma tigela de plástico, enquanto olhava à sua volta o nada e a desesperança e a crueza de sua vida animal, isso tocou fundo no homem como nenhum carinho de mulher antes havia tocado. A fêmea conformada com seu destino levou o homem à compreensão de: de que havia, ainda, compaixão nesse mundo. Que ele a perdoasse por nascer galinha, era o que pedia, mesmo que não houvesse pedido coisa alguma. O homem entendeu a mensagem – e mais: o homem apaixonou-se pela galinha. Não pelo animal em si, e sim por sua não-deliberada inocência. Talvez fosse apenas a latência de sua irracionalidade manifestando-se de forma mais exterior de si mesma. Talvez fosse que o homem já não suportava mais a realidade de tão indecorosa tarefa, por que cada um não lida com o que é seu? Sentiu-se de repente responsável pela refeição e subsistência de todos na vila. Pela existência e manutenção de todos, esse era o seu papel. E é doloroso ser responsável pela dependência alheia. E estava apaixonado. Não podia negar. A inocência e compaixão da galinha o invadiram de vez. Não poderia. Não conseguiria. Nunca mais. Quem sabe mudar de cidade, conhecer alguém, casar, ter filhos, ser feliz? Um grotão abriu-se naquele rosto duro. Era um sorriso. A possibilidade eterna da mudança.
E a galinha a poucos metros. O símbolo de sua nova existência, da mudança definitiva de direção que daria em sua vida. Estava na hora, sentia o momento. Excitado, sentia o suor correndo em suas veias e em seu corpo todo. Queria agradecê-la. Mas como se agradece a uma galinha? Se falasse ela não entenderia. E mesmo que entendesse, ele era homem de modos rudes demais, poderia ser mal-interpretado. Talvez lhe desse um beijo e, já que a galinha não tinha rosto, ali mesmo, em cada um dos lados do bico. Talvez no próprio bico. Não, que o homem não era dado a esses gestos, era oco de carinhos.
Distraída, a galinha nem notou quando o homem a pegou nos braços fortes e torceu sem dó seu pescoço. Surpresa, também não teve tempo de gritar sua decepção. A fragilidade de sua inocência desapareceu num gesto cotidiano. O homem espantou-se com sua atitude. Matar a galinha foi seu jeito óbvio e automático de negar a mudança dolorosa que se avizinhava doendo demais em seu espírito já resignado. Os dois sabiam disso, mas apenas por dentro deles mesmos. A revelação do ato é que os pegou a ambos desprevenidos. O almoço de sábado seria servido. Em ponto.
Jamais aquele homem deixou de assassinar galinhas. Jamais aquele homem foi feliz. A compaixão, assim como a inocência, não brota em solo calejado. Morreu seco. E só...

para Clarice e Caio, que tanto gostavam delas...

- música do post: "a via láctea", Legião Urbana

12 comentários:

Andrea de Lima disse...

pensei que ele fosse casar com a galinha. aposto que esse pensamento foi ainda mais inocente do que o da galinha, hein? haha.

até mais ler.

Bill Falcão disse...

E eu pensava em Clarice, enquanto lia teu post, Alex!
No final, batata! Para Clarice e Caio. Tudo sintonizado!
Grande abraçooooooooo!!!!!!!!!!!

Filipe Garcia disse...

Meu,

que intensidade o seu texto! E que surpresa ele ter optado matar a galinha. Você me levou a crer que haveria complacência no ato do matador e um pedido de redenção ali no galinheiro. Sabe aqueles textos que te deixam meio zonzo e meio poeta? Pois é... foi essa a minha sensação.

Abraços.

Anônimo disse...

nossa... eu ja passei por isso!! hahah quando tinha uns 8 anos foi fazer uma visitinhas aos meus parentes na bahia e meu tio deu ordem para mim e minha prima matar uma galinha.. eu olhava pra ela e ela olhava pra mim e eu não tinha coragem e minha prima tinha medo pq ela sempre se machucava fazendo isso mas o medo de levar bronca do meu tio foi maior e corremos a trás dela por uns 15 minutos e minha prima torceu o pescoço dela... foi triste! e eu não tive coragem de almoçar lá naquele dia

beijosssssssss

Anônimo disse...

Esse fim de semana eu fui assaltado. Quando vi a arma, veio aquele grito de horror, sabe? Aquele grito que só sai quando a morte mostra a cara bem de perto. Ele arrancou de mim o mp4, que não tinha arquivo nenhum além das músicas que também estão salvas no computador. Mas subiu uma indignação tão grande, somada à decisão a proteger meu celular (agenda, mensagens, telefones), que gritei - como sempre quando sou assaltado, e como nunca porque nunca me exalto. "Atira mesmo, seu filho da puta. Vai tomar no seu cu", ninguém acredita que chego a este estado porque nem falar palavrão eu falo. Enquanto corria, olhei pra trás. O assaltante me olhava meio fascinado, sabe? Não sei se fantasiei isso. Na verdade, nem lembro como ele era, o tom de pele, o formato do nariz, os olhos, não lembro de nada. Mais do que sofrer pela sensação terrível de violação, passei a semana especulando os sentimentos dele. Lendo este seu post, relacionei. Louco demais.
Ah! O número de vezes que eu releio, é o número de vezes que eu altero. É uma obsessão horrorosa pela perfeição que eu ainda não aprendi a controlar.

Stella disse...

Primeiro, desculpas, desculpas, desculpas mil de minha parte! Jamais queria que você pensasse daquela forma. Nossa, Alex, eu sinto muito mesmo!...


É que eu não tenho seu e-mail e até poderia ter mandado para ti antes, mas fico sem graça de ficar pedindo e-mail, ainda mais porque você, às vezes, é bem reservado. E se é assim, o bom é respeitar.

Mas quero tentar remediar meu erro, ok?

Me permite fazer isso?

Então, me manda teu e-mail que te mando hoje ainda o restinho do texto. Mas, de qualquer forma, ele ficou tão ruinzinho que provavelmente não valeria a indisposição que criei contigo.

Desculpa mesmo, Alex...


Cris :(

Stella disse...

Segundo comentário:

:)( Eu muito triste, peço teu e-mail...

Fazemos as pazes ou continuarei sendo a cruel? :O(


Beijo (muuuuuuito choroso)pra ti....

Stella disse...

Falando do maluco do matador de galinhas, como foi que conseguiu trazer humanidade e lirismo a uma penosa e seu "assassino" de maneira tão emocionante?

O final é tão seco quanto eu imaginava que você o criaria. (Acho que estou começando a aprender a identificar sua escrita!) E sinceramente , se o homem deixasse a galinha viver ele teria a "obrigação" de ser feliz e a maioria das pessoas, eu acho, não estão preparadas para isso tanto quanto já se acostumaram a serem tristes. Parece insano dizer isso, mas é verdade. A agrura da vida vira panacéia e cotidiano. A felicidade é incomodo; têm-se que sair de seus lugar, alterar rotina e vida para ir atrás dela. E isso é pedir muito, é arriscar muito...

...mas, não minto, eu deixaria a galinha viva...e iria buscar ser feliz. Porque não há (para mim) experiência mais incrível do que arriscar-se em busca de algo que valha a pena. E se vale à pena, vale a qualquer custo.


Um beijo totalmente arrependido da grosseria que fiz contigo e um abraço de reconciliação!


Bom fim de semana, Alex, e continue usando o repelente, a vela e, se sua religião permitir, o terço também! Quero nem sonhar saber de você doente, hein? :)


Até mais, Carioca!


P.S.:Amigos?...

Anônimo disse...

nãaaaaao acreditooooo

eu tava crente que ele ia salvar a pobre galinha, tsc tsc tsc.

poxaaaa

=*

Anônimo disse...

Eu acho que a Clarice e o Caio se sentiriam lisonjeados com a homenagem.Mas eu nunca tive pena das galinhas (me desculpe o trocadilho).

Já pensou na proposta de elaborar os 10 PECADOS IMPERDOÁVEIS EM UM GAY?

Anônimo disse...

Tadinha da galinha. Que dó... :-(

Jaya Magalhães disse...

"E é doloroso ser responsável pela dependência alheia".

Coloquei essa frase aí porque eu venho buscá-la depois. Me chamou a atenção para algumas realidades do lado de cá.

Sobre a história? ADOREI! E quase acreditei que ele fosse construir uma vida nova ao lado da sua amada galinha.

Brincadeiras a parte, é bom abrir os olhos para o fato de que "a compaixão, assim como a inocência, não brota em solo calejado."

Prazerzão te ler assim.

Beijo.