15.3.09

1 tard qualquer

...na sacada, a caneca de chocolate quente fumegava em plena tarde fria. Ainda não havia se acostumado... muito doce, achava. Melhor do que ficar sem nada, no entanto. Café não podia mais, ordens médicas. A vida não podia mais, pensou, bestamente filosofando coisas sem sentido. Havia se prometido parar de fumar, promessa velha e difícil de cumprir. Afinal, em que muleta se apoiaria quando acontecesse de novo? E sempre acontecia. Acontecia porque era o tipo de pessoa que não consegue se controlar, engolir sapos e ficar de esguelha, esperando o momento ideal. Agir é tão difícil. Preferia ficar assim, na solidão de uma tarde qualquer, nem alegre nem triste, adivinhando formatos de nuvens e amontoando compromissos para outra hora.
O telefone tocou o dia inteiro e não atendeu. Fugia, não queria enfrentar qualquer mudança súbita de tom. Ao mesmo tempo, sabia que esse modo de ser não poderia durar indefinidamente. Por isso, ou por qualquer outra razão que agora não vem ao caso, tirou o gancho do aparelho quando o próprio ruído soava rouco pela insistência. Era daqueles velhos, tipo telebrás, indestrutível, disseram-lhe no brechó – e preto. Achou um charme esse ar meio espartano; e o preço também.
- E aí? Achei que tinha morrido. Liguei tantas vezes nesses últimos dias.
- Uhum...
- Queria saber como você tá. Por que não manda notícias? Cê sabe que me preocupo.
- Uhum... é, eu sei. Desculpa, né nada contigo não... Sou eu, é sempre comigo mesmo...
- A mesma estória. Sabe, tá difícil continuar assim. Parece que a gente não combina mais, que a gente não se entende. Acho que não custa nada cê me dar um pouco mais de atenção, poxa. Eu cuido de tudo pra você!
- Você não sabe o quanto me custa...
- O quê? O que que cê disse? Fala mais alto que eu não te escuto.
- Deixa pra lá, você nunca vai saber o quanto me custa...
- Ahn? Ninguém merece esse teu telefone velho, hein. Fala mais alto, pô! Alô? Alô? Cê ainda tá aí?
O clique talvez tenha sido a resposta mais curta e audível que poderia dar. Nem mesmo a voz saía como desejava. Não tinha mais forças para lidar com tudo aquilo. Os papéis sobre a mesa que pediam organização. Os poemas que tinha de organizar para a coletânea, as provas de outro trabalho... Todo mundo dizia que era normal, que era assim mesmo, “coisa de artista”, uma hora passa, e já não sabia há quantas horas esperava a solução mágica.
Aqueles versos, os versos que havia escrito e que nunca seriam publicados. A indecência do ser, um bom título, achou, mas a ideia acabou rejeitada de um jeito vago, enquanto sorvia os últimos goles do chocolate já frio. Sedimentando no fundo da caneca branca, atentou para dentro de si com a certeza de que o telefone tocaria tantas e tantas outras vezes, e de que a vida não valia a pena pela poesia. No vigésimo toque de semanas depois, esqueceram-se dos contratos e convenções, e enfim desconfiaram do óbvio...

- música do post: "lacho", Omara Portuondo

9 comentários:

Jaya Magalhães disse...

Primeiro que esse texto teve a cara-retrato do meu domingo, hoje.

"Preferia ficar assim, na solidão de uma tarde qualquer, nem alegre nem triste, adivinhando formatos de nuvens e amontoando compromissos para outra hora."

E gosto.

Alex,

O personagem dessa história, outra vez, fala de coisas únicas e amplas, ao mesmo tempo. Internalizações dele, que o mundo compartilha, quase sem querer.

Tua escrita prende. A gente lê num ritmo desordenado, querendo chegar ao ponto final, e qual não é a surpresa ao dar de cara com as reticências. Coisa tão tua, isso!

Fiquei aqui, por fim, a desconfiar de um óbvio mutante. Poesia. Ou não.

Beijos, daqui.

P.S.: Um presente, você é, por me roubar os melhores sorrisos de uma noite febril. Obrigadas pelas palavras de sempre, rapaz. Te quero bem, e não é pouco.

Andrea de Lima disse...

faço das palavras da Jaya, as minhas: "Tua escrita prende. A gente lê num ritmo desordenado, querendo chegar ao ponto final, e qual não é a surpresa ao dar de cara com as reticências". é bem isso. não te conheço, porém, tão bem, para dizer que é coisa tão sua. mas é coisa muito minha agir do modo como ela disse, quando leio seus posts. e me aconcheguei no mundo bloguístico agora. sei lá, me vi em trio: eu, você e ela. três "conhecidos".

até mais ler.
beijos

Camila disse...

Não resisti a minha curiosidade e vim visitá-lo. Quando entrou no chat do Tripé eu estava ausente, porem os comentários me instigaram a lhe ler.

Li este conto e o da Mariazinha. Gostei de ambos. Voce tem uma escrita agradavel e estilosa. E usa metaforas deliciosas e inteligentes, gostei muito.

Voltarei mais vezes.

BeijO e a gente se esbarra uma hora no chat.

Caah

Anônimo disse...

"Ardo em desejo na tarde que arde". Adorei teu texto. Beços!

Camila disse...

Alex... não entra no chat mais naum é?!
Vontade de falar contigo.
rsrsrs

BeijO

Thiago disse...

Concordo, o cigarro às vezes serve de moleta, de tripé eu diria, a maioria das vezes! E esse teu post teve gosto foi de quarta feira chuvosa e fria como tu mesmo disse. De vontade de quietar o ser...de pensar em nada e em tudo ao mesmo tempo. Parece desespero, pensar num mundo como pedaço do céu, sem nuvens, nem pássaros. Pestanejar e não ver sempre o mesmo tom azul, é ser diferente, é ser cinza de vez em quando porque é necessário.

Anônimo disse...

FAÇO HOJE UMA PEQUENA HOMENAGEM NO BLOG PARA VOCÊ. MUITO OBRIGADO, ALEX!

Camila disse...

Alex
Desculpe-me aquel dia no msn, minha conexao caiu e nao consegui voltar.
Mas gostei de falar contigo, quando puder apareça, heim?!

Beijos messssssmo!

Bill Falcão disse...

Li este post aqui e também o anterior, Alex! E sinto que o velho e bom blogueiro conseguiu retomar o seu vôo.
Porque suas palavras voam bonitas!
Aquele abraço!!