21.3.09

cuba libre

...sobre a cama os comprimidos espalhados denunciavam o ato em seguida. Abriu a boca e engoliu logo cinco, ajudado pelo cuba que preparara com tanto cuidado. Dessa vez com coca-cola mesmo, pelo menos agora, nem que fosse só agora, tinha de fazer algo certo nessa vida. Outros seis foram sem esforço, goles grandes, rápidos, ávidos da certeza de antes, planejada com todos os detalhes aquarianos. Um leve torpor. Da bebida, talvez, mistura inexata ressoando a álcool em demasia. Nunca fora inteligente mesmo, nunca prestara pra química, e um riso histérico cuspiu metade de uma daquelas pequeninas rodelas cor-de-burro-quando-foge. Se até o burro foge, pensou. Química, também pensou, e ao riso misturou-se um choro profundo, calado de tantos anos de erosão interna. E nem eram tantos assim, mas pesavam como se fossem. Porque pesa, sabe, carregar essa coisa que vai curvando a gente a ponto de dobrar a coluna, de fazer com que a gente encare o chão como a única perspectiva possível. O chão ou isso, e olha pro copo vazio de cuba, daqueles enfeitados, de requeijão. O torpor aumenta. Pra empurrar o restante usa a vodca mesmo (rum tava caro demais), pura, e das boas, havia raspado do resto de suas economias o pouco praquilo: não se sabe se foi antes ou depois de tomar a penúltima partícula do que considerava ser a promessa própria de um happy ending possível, que o braço direito pendeu e o copo saiu rolando pelo tapete vagabundo da quitinete...

- música do post: "21st century kid", Jamie Cullum

8 comentários:

Luciana Brito disse...

Nossa, lembrei do livro "Veronika decide morrer", do Paulo Coelho.

Suicidar-se é um ato de coragem e covardia juntos. Só não pode haver pensamento, tem que ser feito de uma vez, que nem gole de bebida com pressa.

Essas idéias me fascinam, mas também assustam...

Beijos Alex ^^

Gustavo Krawser disse...

A única questão verdadeiramente filosófica, né? Ainda bem que a minha psique não é tão forte. Caso fosse, seria capaz de me matar. Coisa de gente doida. Eu jamais cometeria suicídio.

Camila disse...

Suicidio é extremamente complexo, não julgo que é covardia ou muita coragem.
Sõ quem se sente no fim da estrada sem saída pode sentir o que leva a cometer/pensar em se matar.

Gosto dos seus contos, dos detalhes. Me faz visualizar a cena.

BeijOs

Bill Falcão disse...

Lembrei de um texto de Camus, acho que é "O Mito de Sísifo".
O conto é bem cinematográfico,dá pra gente "ver" o que acontece.
Aquele abraço!

Jaya Magalhães disse...

Os detalhes aquarianos demonstram parcelas de você, nesse meio. E que pare aí, era meu pensamento inicial. Depois me libertei de conexões, e fui ser o texto.

Pensei na "coisa". Quis que ela se chamasse vazio, posto que, na vida, do lado de cá, ele é o responsável principal de inúmeros andares curvados.

Pensei ainda se me idenficaria com o personagem. Não o fiz. Acho até que poderia ousar dizendo que seria possível eu errar em minhas vontades. Fiquei pensando se existe vez pra uma "Clarisse", como a de Renato Russo, que tanto enfeitou teu post, ao meu ver.

Ah, Alex. Teus detalhes aquarianos pintaram um moldura de desespero, aos meus olhos. Foram cenas, também. Foi arte.

Beijos, querido.

R. disse...

Jamie Cullum é ótimo. Me traz lembranças.

Quanto ao suicida, tem que tomar muito cuidado com a dose, se for querer uma overdose de comprimidos. Com comprimidos de mais o corpo reage, põe tudo pra fora e lá vai ele ficar internado com os rins comprometidos. Pula da ponte, certo que funciona!

Abraço

Filipe Garcia disse...

Oi Alex,

a morte parece saída algumas vezes. Egoísta pensar assim: um desfecho pra uma vida que não se tolera. Suicídio é fraqueza, verdade. É a opção do agoniado, depressivo, desesperançoso. A quem nunca faltou coragem? Quem nunca deixou de ser coerente um dia?

Seu texto me trouxe aquelas comichões por dentro. A idéia de que há pessoas na mesma situação da personagem, que condenam a vida, me traz tristeza. Oxalá pudéssemos entrar no quarto, sentar na cama cheia de remédios e travar uma conversa cheia de piadas com o suicida. Engraçado, mas não nos damos conta do quanto uma palavra pode fazer diferença pra alguém em determinado dia.

Obrigado, Alex. Pela reflexão. Belo texto triste, mas bonito.

Abraço.

Identidades Fragmentadas disse...

Caramba, que blog diferente! Parabéns pelo tratar da escrita, muito bom!