Acordava cedo, trabalhadora que era. Pegava dois ônibus, uma linha de metrô e mais dez estações de trem, além de uma boa caminhada de meia-hora até o serviço: pesado, insalubre, interminável. Mas isso sou eu quem diz: Mariazinha não diz nem reclama de nada, nunca reclamou. Mariazinha nascera pra ser santa. Mas demora, então não. Porque ela tem mais o que fazer.
Mariazinha vivia sozinha. E diz-se “vivia” com toda a propriedade do termo, pois não tinha pai, mãe, irmãos ou marido. Pra falar a verdade, nem nunca namorado teve. Era religiosa. Ninguém sabia de sua história de vida. Aliás, mal sabiam que “vivia”. Quanto mais de sua história. Sozinha.
Mas num dia qualquer: Aconteceu. Descendo do segundo ônibus encaminhando-se para a estação de metrô apressada pra não perder o trem pra não ter de andar ainda mais rápido por causa do seu serviço pesado insalubre interminável de repente estancou: um carro veio em sua direção e ela não o vira. Quase foi atropelada. Coração a mil em poucos segundos. Ainda foi xingada pelo motorista. Palavras de baixo calão. Fez questão de não entendê-las. Mariazinha nascera pra ser pura. Finalmente o viu: de início não compreendeu – achou que era pecado; então não deu importância. Afinal, tinha de manter a sua pureza intacta.
Pegou-o. Estava sujo da lama da chuva do dia anterior. Nem precisou conferir até o final: estava premiado. Estava ela mesma premiada. O bilhete lhe conferia o ingresso a um mundo totalmente novo e desconhecido. Nem sabia o que fazer com tanto dinheiro. Sabia apenas que o possuía. Mariazinha possuía o bilhete que por sua vez a possuía. Primeiro namorado. Primeiro beijo. Primeiro orgasmo. Primeiro prazer. Primeiro. Gemeu baixinho com medo de assustar-se a si própria em seu novo território. Ela-mesma. Antes disso “vivia”. Agora vivia. Sem aspas. E lhe bastava, pois a liberdade foi tamanha que:
Correu como potro livre-leve-solto numa pradaria toda verde e plana e ininterrupta como seus cabelos-crina agora também soltos na felicidade fácil que brotara dela toda. De face corada chegou ao banco, o vestido de chita manchado do sangue de sua recém perdida virgindade. E então trocou aquele pedaço de papel enlameado de mundo e de pecado por um monte de papel ainda mais enlameado de mundo e de pecado, entrada livre que tinha agora entre Céu e Inferno. Aliás, podia ter dos dois se quisesse. E queria, caftina que se tornara em meio à sua própria mutação. Sentia-se plena, realizada, prostituída de bem e de mal. Era a vida, finalmente a vida. Mariazinha era mulher da vida.
Não voltou mais nunca mais ao barraco onde morava. Aliás, já nem mais se lembrava de que um dia ali morara. Também nunca mais dois ônibus uma linha de metrô e dez estações de trem além de uma boa caminhada de meia-hora até o serviço. Que serviço? Pesado insalubre interminável??? Never!!! Mariazinha agora fala inglês fluente através de seu tradutor, Robert Robertson, pois agora só compra onde se tenha de falar obrigatoriamente em inglês. Quanto ao resto? Bem, dois Mercedes na garagem e um motorista chamado Jean-Luc, além de adquirir uma linha de metrô e dez estações de trem. Só porque não tinha mais o que fazer com o seu tempo livre, livre que era. Mariazinha era mulher livre. Aliás, já nem era mais “Mariazinha”: chamava-se Little Mary, assim em inglês, assim em itálico, que era mais fashion. Contratou alguém até pra assinar o seu novo nome por ela, já que não sabia escrever nem em português. Ah, também era Róberti (como ela o chamava e sem sobrenome mesmo, que isso ela não acertava fosse como fosse) quem pronunciava o seu novo nome, porque assim era mais bonito... (mentira dela, que mal conseguia dizer 33 ao médico, quanto mais Little Mary).
Vocês podem notar que eu não tenho mais pena de Mariazinha (recuso-me a falar e/ou escrever o seu novo pseudonome novamente), se é que mesmo algum dia tive. Creio que é apenas mais uma de minhas personagens que saiu de prumo e perdi o controle. Talvez por tê-la criado tão ingênua e tê-la solto em tão mundo cão como o meu, o seu, o nosso, mas que não o dela. Se eu não tivesse posto aquele bilhete naquele lugar... E se eu não tivesse posto aquele bilhete naquele lugar? Besteira pensar nisso agora. Aconteceria do mesmo jeito. As coisas são como elas são. E cada um sabe de si. Ou pelo menos deveria. Senão quem? Ninguém.
É, Mariazinha não sabia de si e eu, que podia saber dela por ela não poder, não quis. Achei que seria melhor assim. Sem pai nem mãe nem irmãos nem marido. Nem namorado. Virgem que era de si-mesma para si-mesma e para tudo-nada. Mas então o bilhete. O ingresso que a levou para o mundo e a tirou definitivamente de mim. Enquanto aqui divago essas besteiras com vocês, Mariazinha se diverte em sua sábia ignorância de gente que tem todo o tempo do mundo nas mãos, que pode muito bem manipular a fortuna como bem quiser, desafiar Cronos, Zeus, a mitologia inteira e o diabo que te carregue!!! A mesma (ou talvez outra) que outro dia de manhã rezava dois padres-nossos e uma ave-maria tomando o cuidado de não errar que era pra dar sempre a mesma soma: três: trindade: em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém. Agora não, nunca mais. Olha lá, entupindo-se de chocolates da Bavária, caviar dinamarquês, vinho italiano, Chanel da cabeça aos pés, sex drugs & rock’n’roll, baby...
Não, chega, isso já foi longe demais. Mariazinha tem agora tradutores de árabe até o último dos dialetos que se fala nos confins do Zimbábue. Possui todas as riquezas e pobrezas do mundo inteiro, porém não é dona de nada. Nem de si-mesma. Muito menos de si-mesma e de tudo o que compra por falta de tempo porque esse ela já gastou todinho mas quer mais por falta de espaço que, aliás, também já é todo seu: mundo, Via-Láctea, o cosmos inteiro e aos pedaços: universo: Big Ben. Vácuo. Isso era o que era: vácuo. Mariazinha era puro vácuo.
Ah, quer saber, cansei-me dessa estória, até porque não mais me restou espaço pra nada. Pra falar a verdade, nessa estória tudo não me resta mais: Mariazinha possui. Qualquer coisa tem a marca do pecado enlameado num bilhete escondido numa sarjeta quando foi quase atropelada por um carro cujo dono lhe disse palavras de baixo calão. Agora ela entendia. Fazia questão. Uma vez que possuía tudo e nada.
Mariazinha nascera pra ser rica: era feia e necessitada. Necessitada por ser feia. Por dentro. E por fora também. Dizem que ela lembra muito a Marilyn Monroe. Concordo. Não se pode ter tudo, afinal de contas...
livremente inspirado em Macabéa, personagem de Clarice Lispector
- música do post: "lapinha", Elis Regina
4 comentários:
Mariazinha tem malemolência hahahahaha
Alex, adorei esse texto de verdade! Marizinha apesar de sozinha, é esperta.
E tem o mundo nas mãos, só n sabe que tem..ou talvez saiba e finja que não.
Te fazer um convite pra um chat de blogueiros, se puder add ao teu msn group8738@groupsim.com ficarei honroso!
Um abraço.
Essa Mariazinha hein... quem conhece a história que a Clarice escreveu, reconhece as semelhanças.
Muito bom esse texto, gostei.
Mariazinha conseguiu o muito que não tinha e ao mesmo perdeu o pouco que tinha em si mesma.
Será mesmo que ela tem algo? Materialmente e superficialmente, acho que sim. Mas não é isso que importa em primeiro plano.
Beijo moço... ^^
Ahh Mariazinha, será que esse bilhete foi bom pra ela?
Conheceu o mundo, fazendo inteiramente parte dele. Não era melhor continuar sozinha? Pra mim, a Mariazinha se perdeu ao se encontrar, sabe-se lá né.
Beijo Alex.
Muito bom! Estava passando e me surpreendi com a qualidade do seu texto. Voltarei mais vezes pra trombar com outras Mariazinhas, Joaninhas e personagens que o valham. Obrigado!!!
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