25.4.09

num momento d dcisaum

...ao atravessar de um lado pro outro em meio à madrugada de uma rua deserta, teve de tomar cuidado pra não tropeçar e cair em cheio na poça. Havia chovido bastante durante toda a noite, mas não reparara. E nem poderia. A mesa que costumava ser sua naquele restaurante numa outra rua menos deserta ficava virada pra parede, negando-lhe a possibilidade do presente. Não que isso o incomodasse, pelo contrário.
As fotos antigas penduradas em velhas molduras traziam-lhe a nostalgia do que não volta mais, e não voltar mais era exatamente do que precisava, se bem que sempre na décima terceira dose percebia que não funcionava dessa forma, mas aí já era tarde demais. Se lembrar das coisas não doesse, o que seriam então aquelas inúmeras ressacas em tantos dias seguintes que na verdade eram o mesmo interminável inferno? Fora abandonado, e teria de lidar com isso uma hora ou outra. Atravessando as ruas desertas em meio à solitária madrugada de rumo incerto, sentia como se o fizesse pela última vez.
O apartamento minúsculo onde morava a cada dia mais se transformava numa lixeira de lembranças. Não suportava permanecer ali. Por outro lado, não aguentaria se desfazer daquilo que o impedia de esquecer o restante. Riu-se da ideia, e por um átimo pareceu que uma fagulha de alegria iluminava o ambiente carregado. Foi só por um instante, mas podia-se vislumbrar que até o próprio apartamento vibrava na expectativa de dias melhores. O riso, que era histérico e alucinado, desfez-se em careta sombria, mergulhando tudo, inclusive ele, nessa atmosfera esquizofrênica que cheira à fumaça de cigarro barato. Riu-se de novo e de repente, percebendo que, sendo aquilo uma lixeira, ele mesmo era parte do lixo. O que não deixava de ser verdade. Desde que ali ficara sozinho, realmente tornara-se pedaço de coisa alguma.
Como se driblando a morosidade do corpo em torpor pelo excesso de álcool, levantou-se o homem e, enganando os próprios pés com passos lépidos e certeiros, como a faca que buscaria, cortou o ar até a cozinha. Procurou em todas as gavetas, não encontrou, até lembrar-se de ter vendido todos os talheres e também tudo o mais que podia ser vendido dali. Precisava de dinheiro, estava desempregado desde que... desde que estava só.
Talvez só lhe restassem pouquíssimas alternativas. Por isso, num momento de decisão, correu atropelando-se em direção ao banheiro. Não havia mais espelho, não queria ter o desprazer de se olhar desse jeito, esmorecendo aos olhos de todos. Como um homem pode chegar ao fundo de si mesmo? O processo ele desconhecia, mas o resultado gritava como queimadura encarnada na pele.
Pegou a gilete. A lâmina cega não chegou nem a arranhar as profundas cicatrizes da última tentativa. Desesperado, o homem ainda pensou em atirar-se janela afora. No entanto, da outra vez conseguiu apenas estilhaçar ambas as pernas. Parecia condenado à sua própria subsistência, a uma vida marginal oscilando entre a morte e o vegetar, o vegetar e a morte – e o estar sempre bêbado. Era a sua estratégia que pensava ser só sua, segredo de si pra si. Mal sabia ele quantos sentiam pena daquela condição. Fazer o quê? Ele era um homem sem função alguma. O pragmatismo que lhe exigiam: não, jamais. Um homem como ele não viveria por muito tempo assim, ferido de morte. Fosse bicho, talvez já lhe tivessem sacrificado, mas a crueldade humana preferia que restasse assim, morto-vivo, pra tomá-lo como exemplo do fracasso, de uma falha a não ser repetida. O sofrimento alheio é, antes de qualquer coisa, combustível de nossas ambições.
Porém o homem não pensava nisso. Aquele ser de interior destruído e destituído de si queria apenas ter o direito de morrer. Até que ponto não se pode decidir sobre o que se tem de mais essencial, como a capacidade de acordar a cada dia sob o peso de nossa carne? E a carne do homem lhe pesava, e apodrecia, mesmo que ainda aparentemente intacta. O homem era uma putrefação em plena existência, jogado às traças de recordações espalhadas pela sala escura e sonolenta. Aquelas cartas, ele já as lera milhares de vezes, até a última, que nada nunca lhe esclarecia, pelo contrário, tornava-o ainda mais canhestro dentro de si e de suas olheiras pisadas.
Nem mesmo eu sei o que aconteceu ao homem e estou quase certo de que ele também não sabe. Mas não importa, porque não se sofre à toa, apesar de que a mais ínfima das desconfianças pode levar um homem como aquele, ou talvez apenas qualquer outra pessoa, ao limite de se transpor a si mesmo. E não há volta...

- música do post: "it's a heartache", Bonnie Tyler

13 comentários:

Ademerson Novais disse...

Se escrever é atravessar a linha do imaginario e reter em mãos osdeconhecido...vc esta indo muito bem...vc traduz em palavras a engenharia das emoçoes....os mecanismos de sentimentos tão delineado e mesmo assim sem rumo algum... vc nos leva para um caminho diferente..nos mostra o atalho...nos dá a lanterna...para seguir numa estrada semi-escura...leio aqui tuas linhas e vou me buscando...buscando...me encontrando e me perdendo...escreves como um eu dividido em varios nós....mais sendo voce.....

Fico feliz por vir aqui...e lê e lê...


Ademerson Novais de Andrade

Camila disse...

Alex, queridooooo
As vezes me faltam palavras para adjetivar seus textos, sabe?!

Eles são sempre profundos, com um "que" de enigmaticos, por mais explicitos que pareçam ser.

Gosto de ler, isso posso afirmar.

BeijOs

Andrea de Lima disse...

não sei de que gosto mais: se dos seus posts, se dos seus comentários. lindo!

Bill Falcão disse...

Brilhantes reflexões, Alex, palavras que nos levam de um lado para o outro, interagindo com esse belo e novo template!
Eu só podia gostar, né? Pois, de Lua, vivo todas as fases!
Aquele grande abraço!!

CátiaSofia disse...

Homens como este, por vezes não consegue sair do poço, do fundo poço, porque talvez não tem o apoio dos amigos, e sozinho não consegue procurar sua força interior. É triste mas infelizmente é o que acontece a muitas pessoas!
Amei teu texto e tua maniera de escrever, os meus parabéns:]
Beijo
|desculpe a invasão|

Érica disse...

Alex, tem um meme pra vc lá no blog

Divirta-se

Abraços

Anônimo disse...

Prelmente ele era quem sentia mais pena dele mesmo por se permitir tal estado e tais situações...
Tua escrita é perfeita, não conseguia parar! Prende mesmo... Parabéns!

Anônimo disse...

Prá retribuir teu comentário...
Eu nunca fico incompleta, sem uma justificativa. Tem sempre um "*" prá me explicar! rs
E que bom que gostaste do texto. Críticas e sugestões sao sempre bem vindas!
S&TC, prá mim, é completo, e tradus com fidedignidade os dilemas da mulher de 30 (ou quase 30). Ainda mais quando se juntam todas as mulheres em uma só. Haja dilema!!! rs
Beijos! Volte sempre...

Anônimo disse...

Quem cai tão fundo assim, é porque subiu demais, subiu sem cuidado. Mas quem pensa em cuidado quando só vislumbra a satisfação dos seus desejos, aqueles que provavelmente explicam a sua existência? Nessas horas aquele que nos protege muitas vezes, o medo, some. Aí, chega-se lá no alto, bem lá no alto e não encontra nada. E como que o chão diminuísse abaixo dos pés, só resta a queda. Queda livre. Queda de dias, semanas, meses, anos. É triste, não é? Eu, para meu bem ou mal, sou cheia de esperança, acho que para tudo há jeito. Provavelmente, estando num poço assim, beberia a água e me poria a subir outra vez.

Alex, beijo pra ti!

R. disse...

Cara, eu fui lendo e lendo e foi me passando Tim Maia na cabeça "não sei por que você se foi, quantas saudades eu senti! E de tristezas vou viver e aquele adeus, não pude dar...", sabe?

Lembrei também do Pedro, personagem do meu conto eterno que já descambou praquele ponto que sei como acabar mais,l só que com classe.

Bom, é isso.

Grande abraço!

A Torre Mágica | Pedro Antônio de Oliveira disse...

Ó! Adorei as mudanças aqui do blog! O visual ficou muito bacana!

Não tenho como lhe agradecer pelas palavras de apreço, caro Alex!

Sobre o curso... vamos ver! Vou me informar sobre algum aqui mais perto de casa :) !

Abração forte.

Logo, logo, eu volto.

Pedro Antônio - A TORRE MÁGICA

Anônimo disse...

Obrigada pela tua presença mais uma vez!
Todo o fim dói. Mas há um alívio que compensa a dor e justifica o fim. Esse tem que ser o foco!
;-)
Beijos, volte sempre!

Anônimo disse...

Ah, esqueci de dizer... O título desse teu post me traz várias idéias. Ainda vou postar algo parecido, mas coloco teus créditos!
+ beijos!