11.4.09

soh, + 1 prece

...levantou-se como se partisse. Era noite e no meio da escuridão topou com algo que era si-mesmo através do pé na quina de algo duro, de madeira, de algum material que matéria era mais do que ele. Percebia-se vagamente, a não ser no ponto lancinante onde uma dor doía fino e consistente, como quando se tem algo preso na garganta – mas que não pode ser dito: não, não se pode dizer a coisa que fica presa à garganta: há o perigo de revelar-se.
A cabeça girava, uma leve tontura mansa. Hipnotizado num estado de semiconsciência – ou quase-sono, ou sonho, ou despertar ou qualquer outro desses estados em que não se é possível abrir os olhos e simplesmente ver – um cheiro verde penetrou-lhe nariz e corpo e entranhas adentro, o estômago se retorceu e os últimos restos podres de um jantar mal-sucedido (“Boa noite”, e então a porta fechou deixando-o pálido e incongruente do lado de cá, que é sempre o de fora. Sequer um sorriso.) vieram à tona como a náusea que de súbito o fez agarrar-se à porta, temendo que fosse agora, que fosse a hora, não de ficar, nunca era, mas de ir embora. Não, de novo não.
Numa dessas o dedo escorregou. A luz acendeu, clareando ainda mais de branco os azulejos, que refletiam nele a sua própria palidez, mas também e sobretudo a simetria que lhe era jogada na cara numa falta que não, jamais poderia reverter. Cumprir a pena parecia ser a única saída, pois se antes já havia tentado todas. Ele era justamente aquilo que não poderia ser.
Os olhos já acostumados à luz, viu-se então ao espelho. E como bicho selvagem não se reconheceu. Via o seu rosto, a sua carne, os seus pêlos descendo do peito até mais embaixo, até o ponto onde o tecido azul-claro da cueca escondia a sua alcunha de macho. Mas se não era ele mesmo, quem seria? E a pergunta fatal criou um hiato naquela noite. Os azulejos brancos e pálidos e simétricos sem graça encolheram-se todos envergonhados em seu hermetismo maquinal cuja luz engolida por uma possibilidade súbita de interrupção também mantinha-se imóvel. Chegaram todos ao ponto nevrálgico da coisa: ele questionou-se quando nunca o poderia ter feito. Pois num hiato pode-se perder tudo: é melhor que não saibam de nada, ou, ainda melhor, que não se saiba, apenas. É perigoso tentar dizer, pois quanto mais se fala menos ao espelho se reconhece. Assim...

pro Gustavo, pela lembrança de Bethânia
e por me fazer enxergar a frustração...
PS: que usemos a Páscoa pra refletir...

- música do post: "vida", Maria Bethânia

10 comentários:

Identidades Fragmentadas disse...

Poxa, que arte a de escrever, que a usas tão bem. Muito bom!
Usou elementos que fazem nós questionarmos quem somos...

A Torre Mágica | Pedro Antônio de Oliveira disse...

Grande Alex!

Muito obrigado pelos comentários! Uma Feliz Páscoa! Felicidade sempre!

Um abração! Te espero por lá.

Pedro Antônio

Filipe Garcia disse...

Oi Alex,

quem nunca se encarou no espelho com uma estranheza-mundo? O arrependimento escorrendo pelos olhos, o dedo acusador apontado pra si mesmo, dizendo: "como fui capaz disso?"

Díficl é o perdão próprio, a auto-aceitação. Processos difíceis, de lágrimas salgadas e soluços intermináveis. Conhecer-se é condenar-se, muitas vezes.

Suas palavras: um espelho. Reflexo.

Abraço!

Bill Falcão disse...

Perfeita reflexão, Alex: "...num hiato pode-se perder tudo: é melhor que não saibam de nada, ou, ainda melhor, que não se saiba, apenas. É perigoso tentar dizer, pois quanto mais se fala menos ao espelho se reconhece."
Aquele abraço!!

Amanda Beatriz disse...

que tenso. que crise esse rapaz passou. me deixou meio tonta!
beijo

Luciana Brito disse...

O espelho às vezes mostra o que geralmente não estamos preparados para ver, enxergar e reconhecer em nós mesmos. Uma estranheza do percebido ataca tão forte que o reflexo é tão estranho quanto a sensação de culpa e impotência que se entranha por dentro.

É a outra face de nós... aquela que a todo custo escondemos ou que só nós mesmos reconhecemos (depois do encontro assustador).

Teu texto se revelou bem... exemplo claro de um dos conflitos mais chocantes do ser humano: a auto-aceitação.

Muito bom!


Beijos pra tu ^^

Anônimo disse...
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Camila disse...

Alex e!
Impressionada com seu poder de escrita.
Texto propicio para a data, me leva a refletir.
Conclusões ainda nao tenho...
mas depois lhe conto.

Saudade de falar contigo!
BeijOs gateenho

A Torre Mágica | Pedro Antônio de Oliveira disse...

Que bom que gostou, Alex.

O André realmente tem uma história de vida incrível e ele acaba contando tudo isso nos livros.

Mais uma vez, obrigado por sua presença! Apareça. Seja sempre bem-vindo!

Abração.

Pedro Antônio

Teresa disse...

ei alexxxxxxxxxxxx

que saudades daquiiiiii

=)