...aqueles trinta e oito degraus de madeira um pouco puída era a exata distância que os separava. Quer dizer, os trinta e oito degraus mais vinte e seis passos; quinze, estivesse com pressa. Não estava. E ele não precisava refazer a contagem, já a tinha feito inúmeras e mais incontáveis vezes. Coisa de criança, criança que era.
Conheciam-se desde que se entendiam por gente, e sim, eles entendiam-se por gente à idade de oito anos. Havia apenas um senão: não se tratavam de dois meninos ou duas meninas. Não podiam, igualmente, brincar de lutas ou bolas, como não podiam brincar com bonecas – eram as duas crianças um menino e uma menina nesse mundo de convenções e tabus. E por essa aparente incongruência ou incompatibilidade de um proclamado destino é que os dois, o menino e a menina, brincavam de tudo um pouco: tanto de lutas, como de bola ou com bonecas. A liberdade de serem crianças dava-lhes a chance de infringirem, de certo modo, as barreiras que ainda não conheciam entre eles.
No trigésimo oitavo degrau, a bola debaixo do braço, pelo rosto meio pálido do menino nada disso passava, e sim que faltavam apenas mais vinte e seis passos pra encontrá-la. Ele morava embaixo, e por isso o esforço que fazia pra galgar os dois andares que os separavam mais tarde poderia ser interpretado como gesto de cavalheirismo. No momento era apenas um ato típico infantil, o de um colega ir buscar o outro pra brincar.
Aproveitando-se da licença que tinha, com intimidade percorreu os cômodos até o quarto. Com a mesma intimidade abriu a porta, como tantas outras tantas vezes fizera. E só então aconteceu. Ainda sem roupa, a menina olhou-o sem espanto, ao contrário dele. Mais lívido do que normalmente era, o menino não conseguiu descrever de outro jeito a cena do que deixando a bola, antes debaixo de seu braço, rolar corredor afora. Antes desse momento fatídico eles eram iguais, porém a descoberta cavou um profundo abismo entre os dois. Talvez a menina não fosse tão inocente quanto o menino, ou o fosse muito mais do que ele, pois em nada modificou a atitude. Movida somente pelo automatismo cotidiano, colocou o short que costumava usar pra jogar bola, o blusão já meio manchado e sentou-se na cama pra colocar os tênis brancos encardidos. Perplexo, o menino simplesmente não cria na naturalidade da antiga companheira. E ela, com a mesma expressão mista de ingenuidade e complacência, olhava-o com certa curiosidade. Abriu um sorriso, exatamente o mesmo de antes, inclusive com o mesmo dente falhado como o de antes, mas o menino não viu assim. Era completamente diferente. As crianças não têm sexo uma pra outra, a não ser no momento em que se descobrem homem e mulher. E por mais ínfima que fosse tal descoberta, ou então abrupta, como talvez nesse caso, era definitiva. É a mudança primordial. É a primeira perda.
O menino de algum modo reconhecia isso naquele sorriso, não mais nem nunca mais o de sua companheira de antes, de lutas ou bonecas ou até bola, como a que estava parada, também perplexa, encostada na parede do corredor. O sorriso que o menino reconhecia era o de uma mulher. E sentia-se traído por isso, como se ludibriado durante todo o tempo que passaram juntos. Traidora, chegou a pensar, mas não mais, porque algo líquido, quente e salgado subia-lhe pela face até os olhos, junto a um rubor repentino. Não choraria na frente da menina. Não dela, a traidora. E tantas vezes havia chorado justamente em seus ombros, nos ombros dela, por um joelho ralado ou um galo qualquer. Mas agora tudo era diferente, e, se ele ainda não tinha consciência disso, sobrava-lhe apenas aquele sentimento sem-nome que apertava seu magro peito.
Um homem jamais chora na frente de uma mulher, era o que lhe haviam dito. E tudo aquilo que se acotovelava dentro dele querendo explodir, sair aos borbotões jorrando toda a indignação faiscando em seus olhos, tudo isso o menino engoliu junto com o choro. Não, e era definitivo: não daria esse gosto àquela mulher; ou a qualquer outra. Traído, subjugado em sua inocência então revelada virilidade, o menino, descobrindo-se homem, juntou o que lhe restava de brio e, negando àquela mulher um olhar último que fosse, ela que inquiria dele uma resposta à súbita revelação, masculinizou-se. Ela que se revelou toda Eva tornando-o Adão, ele que nunca quis ou sequer vislumbrou tal responsabilidade. Ele que não aceitava esse peso de culpa sobre seus ainda estreitos ombros frágeis, o menino-homem que ainda não aguentava carregar consigo o fato da infância pra sempre encerrada. Não, a isso ele se negava. E ela, a mulher, talvez ainda mais aturdida que ele, ela que ficasse com seus tênis e cadarços e sorrisos.
Foi então que o menino, cobrindo de si a parte agora homem, máscula, deu-lhe as costas, tomou a bola novamente debaixo do braço e, resoluto, adulto, maduro, desceu novamente e pra nunca mais voltar os trinta e oito degraus que os separavam. Essa é a distância da primeira perda de todos nós, mais os vinte e seis passos, ou quinze, se estiver com pressa. Mas não, ele estava apenas apaixonado. E completamente perdido...
- música do post: "velha infância", Os tribalistas
18.5.09
11.5.09
d berço
...aos dez anos, todos achavam graça quando ele, o menininho, saía ao jardim pra caçar formigas. E todo paramentado com suas calças compridas, camisinha cáqui, chapéu de caubói dado pelo padrasto, as galochas negras que usava nos dias chuvosos pro colégio e, claro, a pistolinha d’água, inseparáveis, os dois, pra tal determinada tarefa. Cenho franzido, bico de lábios vermelhíssimos concentrados, e lá ia ele, o menininho, exterminar a praga que atormentava a família e aterrava qualquer tentativa de piquenique.
Não era fácil, a missão: o menininho lutava ferozmente contra aqueles insetos tenazes de vida, porém minúsculos de força. Podia-se dizer que era covardia, mas as proporções de um fato modificam-se dadas as circunstâncias: que mal poderia haver numa criança brincando de matar formiguinhas no quintal de casa? Era aplaudido ao retornar, sujo nas canelas das calças e ainda mais imundas as mãos e a camisinha cáqui, então quase negra quanto as galochas. No entanto, o que mais chamava a atenção, e só eu percebia, era a expressão de felicidade no rosto do menininho, um regozijo tamanho que, bem observado, seria até o da satisfação de uma crueldade.
Aos vinte e cinco, já no curso de medicina, aprovado com louvor em primeiríssimo lugar, tinha como matéria preferida a anatomia, em cujas aulas sempre se destacava por ser o mais aplicado, assíduo e interessado. O rapaz adorava, sobretudo, os momentos em que estudavam os corpos abertos, os órgãos à mostra, as entranhas desnudas de gente, que, pra ele, representavam perfeitos instrumentos de fascinação. Comumente pedia horas-extras com os professores, pra que lhe explicassem ainda mais detalhadamente os pormenores da máquina humana, em companhia, claro, do laboratório e cadáveres tantas e outras tantas vezes remexidos, costurados e descosturados pelo próprio rapaz, que se formou cirurgião com todos os louvores que lhe poderiam ser conferidos.
Nas reuniões com os ex-colegas de curso, anos depois, ria-se histericamente ao lembrar dos desmaios, convulsões, confusões, azias e ânsias de vômito dos outros na presença dos corpos estudados. Talvez ninguém mais reparasse o brilho com que o rapaz encarava aqueles rostos sem vida, descoloridos e enegrecidos pelo gelo das câmaras, admirando a expressão pra sempre surpresa e imóvel, mesmo quando lhes abria o ventre sem a menor cerimônia, violando o que de mais íntimo se pode tocar noutra pessoa.
Talvez apenas eu tenha reparado na mania que adquiriu de dar nomes àqueles seres sem vida, tanto tempo passava com eles. Escrevia-os no verso das fotos que tirou escondido, a primeira vez apenas de brincadeira, das outras por obsessão, e as quais guardava numa caixinha de madeira no fundo da última gaveta de sua cômoda. Como lembranças, como prêmios, como peças de um extenso e macabro relicário daquelas feições petrificadas, pro rapaz tão corriqueiras e familiares.
Aos trinta e nove, o menininho, o rapaz, o competente profissional, que a essa altura já havia se tornado precocemente a maior promessa na área de cirurgia do país, foi encontrado diante dos pedaços de sua secretária, retalhada por ele, com perfeição e orgulho, terminando de beijar a boca defunta borrada de batom carmim...
- música do post: "bésame mucho", Maysa
Não era fácil, a missão: o menininho lutava ferozmente contra aqueles insetos tenazes de vida, porém minúsculos de força. Podia-se dizer que era covardia, mas as proporções de um fato modificam-se dadas as circunstâncias: que mal poderia haver numa criança brincando de matar formiguinhas no quintal de casa? Era aplaudido ao retornar, sujo nas canelas das calças e ainda mais imundas as mãos e a camisinha cáqui, então quase negra quanto as galochas. No entanto, o que mais chamava a atenção, e só eu percebia, era a expressão de felicidade no rosto do menininho, um regozijo tamanho que, bem observado, seria até o da satisfação de uma crueldade.
Aos vinte e cinco, já no curso de medicina, aprovado com louvor em primeiríssimo lugar, tinha como matéria preferida a anatomia, em cujas aulas sempre se destacava por ser o mais aplicado, assíduo e interessado. O rapaz adorava, sobretudo, os momentos em que estudavam os corpos abertos, os órgãos à mostra, as entranhas desnudas de gente, que, pra ele, representavam perfeitos instrumentos de fascinação. Comumente pedia horas-extras com os professores, pra que lhe explicassem ainda mais detalhadamente os pormenores da máquina humana, em companhia, claro, do laboratório e cadáveres tantas e outras tantas vezes remexidos, costurados e descosturados pelo próprio rapaz, que se formou cirurgião com todos os louvores que lhe poderiam ser conferidos.
Nas reuniões com os ex-colegas de curso, anos depois, ria-se histericamente ao lembrar dos desmaios, convulsões, confusões, azias e ânsias de vômito dos outros na presença dos corpos estudados. Talvez ninguém mais reparasse o brilho com que o rapaz encarava aqueles rostos sem vida, descoloridos e enegrecidos pelo gelo das câmaras, admirando a expressão pra sempre surpresa e imóvel, mesmo quando lhes abria o ventre sem a menor cerimônia, violando o que de mais íntimo se pode tocar noutra pessoa.
Talvez apenas eu tenha reparado na mania que adquiriu de dar nomes àqueles seres sem vida, tanto tempo passava com eles. Escrevia-os no verso das fotos que tirou escondido, a primeira vez apenas de brincadeira, das outras por obsessão, e as quais guardava numa caixinha de madeira no fundo da última gaveta de sua cômoda. Como lembranças, como prêmios, como peças de um extenso e macabro relicário daquelas feições petrificadas, pro rapaz tão corriqueiras e familiares.
Aos trinta e nove, o menininho, o rapaz, o competente profissional, que a essa altura já havia se tornado precocemente a maior promessa na área de cirurgia do país, foi encontrado diante dos pedaços de sua secretária, retalhada por ele, com perfeição e orgulho, terminando de beijar a boca defunta borrada de batom carmim...
- música do post: "bésame mucho", Maysa
2.5.09
olhos d gato
“Is all that we see or seen
But a dream within a dream?”
Edgar Allan Poe
But a dream within a dream?”
Edgar Allan Poe
...a noite silenciosa era o convite perfeito pra um perder-se por aí. Em plena insônia, via-me divagar entre as frestas da quase-loucura do sono negado por perturbações de alma cindida. A casinha no meio do campo guardava a paz funérea de um antigo cemitério. E eterna. E o saber imutável da situação revolvia o meu estômago de dores insuportáveis, dores que me falavam fundo de tristezas emolduradas pelo tempo. No limite de não poder mais calar os gritos que teimavam crescer em mim, reverberando como ecos dantescos por minhas entranhas, resolvi levantar-me e tomar um copo d’água. Assaltou-me o pensamento infantil de afogar as mágoas, quer fossem o que fossem. Nunca antes a distância pareceu tão grande. Nunca antes os passos tão lentos. A cabeça pendida lembrava-me a de um condenado à morte por algo horrível. Talvez mesmo me condenasse por algo horrível que jamais cometi. No entanto, continuava o tortuoso caminho, já que indulgência não se dá a si próprio, até que topei com a geladeira, destoando do momento. A geladeira, e não eu, que perfeitamente me inseria no contexto das sombras diversas, tão fantasmagóricas as coisas se tornam sem o desvelo da luz. Copo cheio, a água descia fácil e evaporando-se pelo meu interior, que secamente restava. Pela metade, chamou-me a atenção um vulto curioso vindo da janela entreaberta: um gato preto encarava-me com seus olhos verdes, profundos, misturando-se à grama do jardim e ao negrume da escuridão. Um gole ficou pelo meio, engasguei com vontade e, quando dei por mim, não de todo recuperado como tonto, outro gato, dessa vez pardo e de olhos igualmente verdes, também me encarava. Infinitos, os gatos detinham todo tempo do mundo, relativizando meu parco conhecimento assustado de copo escorrendo pela mão. Se meio cheio ou meio vazio, não importa: é questão de ponto de vista, somente. Só e já então entregue ao momento, o arranhão do gole abortado abafou os rasgos das unhas ávidas pelo meu corpo metade desnudo. A última coisa que vi foram aqueles pares de olhos, verdes, vítreos, hipnotizando-me de um sossego eterno. No dia seguinte, os cacos continuavam no chão...
- música do post: "one day i'll fly away", Nicole Kidman
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