11.5.09

d berço

...aos dez anos, todos achavam graça quando ele, o menininho, saía ao jardim pra caçar formigas. E todo paramentado com suas calças compridas, camisinha cáqui, chapéu de caubói dado pelo padrasto, as galochas negras que usava nos dias chuvosos pro colégio e, claro, a pistolinha d’água, inseparáveis, os dois, pra tal determinada tarefa. Cenho franzido, bico de lábios vermelhíssimos concentrados, e lá ia ele, o menininho, exterminar a praga que atormentava a família e aterrava qualquer tentativa de piquenique.
Não era fácil, a missão: o menininho lutava ferozmente contra aqueles insetos tenazes de vida, porém minúsculos de força. Podia-se dizer que era covardia, mas as proporções de um fato modificam-se dadas as circunstâncias: que mal poderia haver numa criança brincando de matar formiguinhas no quintal de casa? Era aplaudido ao retornar, sujo nas canelas das calças e ainda mais imundas as mãos e a camisinha cáqui, então quase negra quanto as galochas. No entanto, o que mais chamava a atenção, e só eu percebia, era a expressão de felicidade no rosto do menininho, um regozijo tamanho que, bem observado, seria até o da satisfação de uma crueldade.
Aos vinte e cinco, já no curso de medicina, aprovado com louvor em primeiríssimo lugar, tinha como matéria preferida a anatomia, em cujas aulas sempre se destacava por ser o mais aplicado, assíduo e interessado. O rapaz adorava, sobretudo, os momentos em que estudavam os corpos abertos, os órgãos à mostra, as entranhas desnudas de gente, que, pra ele, representavam perfeitos instrumentos de fascinação. Comumente pedia horas-extras com os professores, pra que lhe explicassem ainda mais detalhadamente os pormenores da máquina humana, em companhia, claro, do laboratório e cadáveres tantas e outras tantas vezes remexidos, costurados e descosturados pelo próprio rapaz, que se formou cirurgião com todos os louvores que lhe poderiam ser conferidos.
Nas reuniões com os ex-colegas de curso, anos depois, ria-se histericamente ao lembrar dos desmaios, convulsões, confusões, azias e ânsias de vômito dos outros na presença dos corpos estudados. Talvez ninguém mais reparasse o brilho com que o rapaz encarava aqueles rostos sem vida, descoloridos e enegrecidos pelo gelo das câmaras, admirando a expressão pra sempre surpresa e imóvel, mesmo quando lhes abria o ventre sem a menor cerimônia, violando o que de mais íntimo se pode tocar noutra pessoa.
Talvez apenas eu tenha reparado na mania que adquiriu de dar nomes àqueles seres sem vida, tanto tempo passava com eles. Escrevia-os no verso das fotos que tirou escondido, a primeira vez apenas de brincadeira, das outras por obsessão, e as quais guardava numa caixinha de madeira no fundo da última gaveta de sua cômoda. Como lembranças, como prêmios, como peças de um extenso e macabro relicário daquelas feições petrificadas, pro rapaz tão corriqueiras e familiares.
Aos trinta e nove, o menininho, o rapaz, o competente profissional, que a essa altura já havia se tornado precocemente a maior promessa na área de cirurgia do país, foi encontrado diante dos pedaços de sua secretária, retalhada por ele, com perfeição e orgulho, terminando de beijar a boca defunta borrada de batom carmim...

- música do post: "bésame mucho", Maysa

20 comentários:

Anônimo disse...

Okay. Vou lembrar-me de não deixar meu sobrinho caçar formigas no quintal. rs

Obrigada por suas visitas, Alex. Gosto do que me diz.
Bj.

A Torre Mágica | Pedro Antônio de Oliveira disse...

Opa! Beleza, Alex?

Obrigado pela força! Adoro ler seus comentários e também os seus textos, que são muito bons!

Fico feliz por saber que gosta do blog. Vou procurar caprichar cada vez mais, apesar da falta de tempo e da correria! (rsrsrsrsrs)

Abração!

Pedro Antônio

Camila disse...

Ai Alex!
Que medo dele! Matador por natureza.

Gosto tanto de te ler... dos detalhes... consigo visualizar as cenas do conto.

Uso as vezes batom carmim... me deixa mais viva.

=)

BeijOs

Adriel disse...

._. nossa... Otimo texto.. prende a atenção... começa tão " eee ti bunitim! " e termina com um "O_O" .... kkkk ...deu para ver cada sena.. cama movimento.. tudo!...


Grande abraço!
Voltarei mas vezes aqui!

Atreyu disse...

Rapaz que coisa né?
E eu achando que ele seria um colega meu na faculdade de biologia...
As aparências enganam

@JayWaider disse...

Alex,

Gosto de seus comentários em meu blog. É verdade a gente sempre se esconde de tantas formas e maneiras que as vezes nos confundimos a nós mesmos, mas um dia a gente tem de se livrar das fantasias pra sermos de fato quem somos. No meio de minha dor pessoal, eu aprendi muita coisa amigo, muita coisa mesmo. A história de minha vida já caminha pro final, pelo menos até onde vou postar, afinal se eu fosse postar tudo umas 50 partes não dariam.
Abraço do amigo Jason

Andrea de Lima disse...

ai, gente. que macabro, né? eu caçava tatu-bola, qual será o meu fim? o.O

beijos e até mais ler.

Willian Lins disse...

Gostei do seu modo de escrever Alex, volto aqui logo pra te ler mais.

Abraço!

Dani Pedroza disse...

Fascinante. Seu texto começa com uma doçura até execessiva, um ritmo lento, dolente, como um dia que de tão calmo a gente pressente que algo de muito ruim vai acontecer, os momentos que antecedem as grandes tempestades, a calmaria que vem avisar que vai chegando o tempo das catátrofes. Aos poucos, o rosa vai dando lugar ao negro, ou melhor, o vermelho. Vermelho do sangue, vermelho dos lábios pintados.

O tom da narrativa vai nos avisando que algo de sinistro está por vir, o que além de nos prender a atenção, ainda desperta no seu leitor um interesse que na verdade já está dentro dele. O iteresse pela desgraça, pelo mórbido. O ser humano tenta negar, mas as tripas fazem parte dele tanto quanto o coração.

O fim não é surpreendente e nem deveria ser. O fim de seu texto vem como aquele presente que pelo embrulho já podemos prever o conteúdo desejado.

Nem preciso dizer, não é? Gostei do texto, mais que isso, gostei do seu estilo. Bom ter chegado aqui. O seu blog, ele sim é surpreendente.

Dani Pedroza disse...

Volto pelo convite de seu comentário. Verdade. No comentário não me convidou pra voltar. O fato é que o motivo, em geral, me atrai mais do que formas ou convenções. E o motivo? Seu talento. Eu sinceramente penso que a aptidão pra ler é muito mais rara e preciosa do que o dom da escrita. Eu adoro ler, portanto nem preciso dizer o meu encanto por bons textos, mas acho que quem sabe ler, vai muito além de se divertir ou aprender com um tema lido, quem sabe ler tem um olhar crítico e sensível que permite que a sua relação com a vida, consigo mesmo e com os outros seja mais rica, mais proveitosa.

Viajei, não? Normal... rs. Mas enfim, outra coisa me chamou a atenção, seu repertório. De Norah a Nando. De Edith a Roberta Sá. João e Bebel. Ai ai, se minha avó tiver mesmo razão, e as companhias realmente falem muito sobre a pessoa, vc deve ser um cara legal... rs.

P.S.: Andava meio sem vontade de postar. Mas escrevi tanto por aqui que resolvi fazer alguma coisa por mim mesma (?)... rs... rs. Repasse de responsabilidade. Percebeu, né?

Laila Braga Barbosa disse...

as coisas sempre mudam... mas tem coisas que continuam irritavelmente iguais...

Bill Falcão disse...

Rapaz, isso é que é um destino macabro, hein? Começa procurando formiguinhas e acaba daquele jeito!
Aquele abraço!!!

Anônimo disse...

Olá Alex, tudo bem? =)

Eitaa... que figura esse cara... rs bacana o texto, gostei!!

Gostei do teu blog... =)

Beijos ;)

@JayWaider disse...

Eu sei bem disso.
Te agradeço pela fidelidade e apoio.
Gosto muito de ler seus comments em meu blog.
Te abraço... Jason.

Jaya Magalhães disse...

Uau!

Dos melhores de todos, posso falar? Aliás, hoje, todo mundo parece ter resolvido postar seu melhor. Li coisas ótimas!

Alex,

Teu texto me trouxe lembranças de casos reais, em noticiários. Do fim exatamente igual a esse, para aquele caçador de formigas.

Nem sei comentar. Me torno repetitiva, ao chamar atenção à tua escrita. Mas é fato: teus textos são lidos em ritmo descontrolado. Sempre.

Beijo, querido.

Filipe Garcia disse...

Ei Alex,

me surpreendi com esse daqui. Não esperava um final nessa linha insana, psicótica.

Por mais que seja uma ficção, sabemos da verdade das nossas anormalidades diárias, de coisas que saem do comum. A linha entre a razão e a loucura é tênue, disse algum desses filósofos/poetas. E eu concordo.

Se eu gostei do texto? Demás, meu caro. Demás...

Um abraço!

A Torre Mágica | Pedro Antônio de Oliveira disse...

Oi, Alex!

A gente só desiste daquilo que não representa muito pra gente. É impossível deixar de lutar por aquilo (ou alguém) que faz o coração bater mais forte!

Um abração.

Pedro Antônio - A TORRE MÁGICA

Késia Maximiano disse...

Q comentário gsotoso de se ler..
Amei...

Beijão, Alex..
E volte sempre tb viu?

Késia Maximiano disse...

E q texto lindo é esse? Sutil, doce, sereno... E ao mesmo tempo intrigante...
Da vontade de embrulhar e guardar com todo cuidado do mundo pra ler e reler, sabia?!

Jaya Magalhães disse...

Alex...