...cedo a minha palavra hoje a outras palavras, de outras vozes, que se misturam à polifonia que ouço nesse despontar do ano que se inicia vagoroso, pesadão, ainda meio de ressaca do último 31. O champanhe já acabou, mas a mensagem fica:
Poema do Menino Jesus
Num meio-dia de fim de primavera eu tive um sonho como
uma fotografia: eu vi Jesus Cristo descer à Terra.
Ele veio pela encosta de um monte, mas era outra vez
menino, a correr e a rolar-se pela erva
A arrancar flores para deitar fora, e a rir de modo a
ouvir-se de longe.
Ele tinha fugido do céu. Era nosso demais pra
fingir-se de Segunda pessoa da Trindade.
Um dia que Deus estava dormindo e o Espírito Santo
andava a voar, Ele foi até a caixa dos milagres e
roubou três.
Com o primeiro Ele fez com que ninguém soubesse que
Ele tinha fugido; com o segundo Ele se criou
eternamente humano e menino; e com o terceiro Ele
criou um Cristo eternamente na cruz e deixou-o pregado
na cruz que há no céu e serve de modelo às outras.
Depois Ele fugiu para o Sol e desceu pelo primeiro
raio que apanhou.
Hoje Ele vive na minha aldeia, comigo. É uma criança
bonita, de riso natural.
Limpa o nariz com o braço direito, chapinha nas poças
d'água, colhe as flores, gosta delas, esquece.
Atira pedras aos burros, colhe as frutas nos pomares,
e foge a chorar e a gritar dos cães.
Só porque sabe que elas não gostam, e toda gente acha
graça, Ele corre atrás das raparigas que levam as
bilhas na cabeça e levanta-lhes a saia.
A mim, Ele me ensinou tudo. Ele me ensinou a olhar
para as coisas. Ele me aponta todas as cores que há
nas flores e me mostra como as pedras são engraçadas
quando a gente as tem na mão e olha devagar para elas.
Damo-nos tão bem um com o outro na companhia de tudo
que nunca pensamos um no outro. Vivemos juntos os dois
com um acordo íntimo, como a mão direita e a esquerda.
Ao anoitecer nós brincamos as cinco pedrinhas no
degrau da porta de casa. Graves, como convém a um Deus
e a um poeta. Como se cada pedra fosse todo o Universo
e fosse por isso um perigo muito grande deixá-la cair no chão.
Depois eu lhe conto histórias das coisas só dos
homens. E Ele sorri, porque tudo é incrível. Ele ri
dos reis e dos que não são reis. E tem pena de ouvir
falar das guerras e dos comércios.
Depois Ele adormece e eu o levo no colo para dentro da
minha casa, deito-o na minha cama, despindo-o
lentamente, como seguindo um ritual todo humano e todo
materno até Ele estar nu.
Ele dorme dentro da minha alma. Às vezes Ele acorda de
noite, brinca com meus sonhos. Vira uns de pena pro ar,
põe uns por cima dos outros, e bate palmas, sozinho,
sorrindo para os meus sonhos.
Quando eu morrer, Filhinho, seja eu a criança, o mais
pequeno, pega-me Tu ao colo, leva-me para dentro a Tua
casa. Deita-me na tua cama. Despe o meu ser, cansado e
humano. Conta-me histórias caso eu acorde para eu
tornar a adormecer, e dá-me sonhos Teus para eu brincar.
...esse texto é uma livre adaptação de Maria Bethânia do poema de Alberto Caeiro, um dos "outros" de Fernando Pessoa. Está no seu show Maricotinha, em que é belissimamente recitado pela voz ao mesmo tempo grave e suave, feérica e sensual, misteriosa e clara, dessa minha baiana das baianas, divino timbre que me ilumina. Optei por essa versão (e não pelo texto original) primeiro pelo tamanho, e segundo por achar que o poema pessoano é ácido, corrosivo e rascante demais para a ocasião. Eu que hoje tô me sentindo molinho, levinho e sensível como uma pluma ao sabor dos ventos... Sinal dos tempos? dos novos tempos, quem sabe. Brinca hoje com meus sonhos, Menino Jesus...
- música do post: "dona do dom", Maria Bethânia
4 comentários:
ai eu adoreiiiiiiiiiii
e Pessoa é PESSOA e só tem ele hehehe
sabe, que às vezes até parece verdade uns trechos aí!!!
=***
que coisa linda! comprido, mas li tudo!
beijos!
Aleeex, que coisa mais linda!
:)
Não conhecia, mas me emocionei tremendamente. Vou salvar na minha lista de arquivos que tocam o coração.
Agora só me resta ouvir na voz de Betânia, minha conterrânea que arrasa! Rs. Imagino que deva dar toda uma áurea ainda maior ao redor de palavra tão bem distribuídas, não?
Um beijo.
:*
Oi, Alex!
:)
Vim rapidinho avisar que tem uma intimação pra você lá no blog.
Abraço.
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