18.5.09

a primeira perda

...aqueles trinta e oito degraus de madeira um pouco puída era a exata distância que os separava. Quer dizer, os trinta e oito degraus mais vinte e seis passos; quinze, estivesse com pressa. Não estava. E ele não precisava refazer a contagem, já a tinha feito inúmeras e mais incontáveis vezes. Coisa de criança, criança que era.
Conheciam-se desde que se entendiam por gente, e sim, eles entendiam-se por gente à idade de oito anos. Havia apenas um senão: não se tratavam de dois meninos ou duas meninas. Não podiam, igualmente, brincar de lutas ou bolas, como não podiam brincar com bonecas – eram as duas crianças um menino e uma menina nesse mundo de convenções e tabus. E por essa aparente incongruência ou incompatibilidade de um proclamado destino é que os dois, o menino e a menina, brincavam de tudo um pouco: tanto de lutas, como de bola ou com bonecas. A liberdade de serem crianças dava-lhes a chance de infringirem, de certo modo, as barreiras que ainda não conheciam entre eles.
No trigésimo oitavo degrau, a bola debaixo do braço, pelo rosto meio pálido do menino nada disso passava, e sim que faltavam apenas mais vinte e seis passos pra encontrá-la. Ele morava embaixo, e por isso o esforço que fazia pra galgar os dois andares que os separavam mais tarde poderia ser interpretado como gesto de cavalheirismo. No momento era apenas um ato típico infantil, o de um colega ir buscar o outro pra brincar.
Aproveitando-se da licença que tinha, com intimidade percorreu os cômodos até o quarto. Com a mesma intimidade abriu a porta, como tantas outras tantas vezes fizera. E só então aconteceu. Ainda sem roupa, a menina olhou-o sem espanto, ao contrário dele. Mais lívido do que normalmente era, o menino não conseguiu descrever de outro jeito a cena do que deixando a bola, antes debaixo de seu braço, rolar corredor afora. Antes desse momento fatídico eles eram iguais, porém a descoberta cavou um profundo abismo entre os dois. Talvez a menina não fosse tão inocente quanto o menino, ou o fosse muito mais do que ele, pois em nada modificou a atitude. Movida somente pelo automatismo cotidiano, colocou o short que costumava usar pra jogar bola, o blusão já meio manchado e sentou-se na cama pra colocar os tênis brancos encardidos. Perplexo, o menino simplesmente não cria na naturalidade da antiga companheira. E ela, com a mesma expressão mista de ingenuidade e complacência, olhava-o com certa curiosidade. Abriu um sorriso, exatamente o mesmo de antes, inclusive com o mesmo dente falhado como o de antes, mas o menino não viu assim. Era completamente diferente. As crianças não têm sexo uma pra outra, a não ser no momento em que se descobrem homem e mulher. E por mais ínfima que fosse tal descoberta, ou então abrupta, como talvez nesse caso, era definitiva. É a mudança primordial. É a primeira perda.
O menino de algum modo reconhecia isso naquele sorriso, não mais nem nunca mais o de sua companheira de antes, de lutas ou bonecas ou até bola, como a que estava parada, também perplexa, encostada na parede do corredor. O sorriso que o menino reconhecia era o de uma mulher. E sentia-se traído por isso, como se ludibriado durante todo o tempo que passaram juntos. Traidora, chegou a pensar, mas não mais, porque algo líquido, quente e salgado subia-lhe pela face até os olhos, junto a um rubor repentino. Não choraria na frente da menina. Não dela, a traidora. E tantas vezes havia chorado justamente em seus ombros, nos ombros dela, por um joelho ralado ou um galo qualquer. Mas agora tudo era diferente, e, se ele ainda não tinha consciência disso, sobrava-lhe apenas aquele sentimento sem-nome que apertava seu magro peito.
Um homem jamais chora na frente de uma mulher, era o que lhe haviam dito. E tudo aquilo que se acotovelava dentro dele querendo explodir, sair aos borbotões jorrando toda a indignação faiscando em seus olhos, tudo isso o menino engoliu junto com o choro. Não, e era definitivo: não daria esse gosto àquela mulher; ou a qualquer outra. Traído, subjugado em sua inocência então revelada virilidade, o menino, descobrindo-se homem, juntou o que lhe restava de brio e, negando àquela mulher um olhar último que fosse, ela que inquiria dele uma resposta à súbita revelação, masculinizou-se. Ela que se revelou toda Eva tornando-o Adão, ele que nunca quis ou sequer vislumbrou tal responsabilidade. Ele que não aceitava esse peso de culpa sobre seus ainda estreitos ombros frágeis, o menino-homem que ainda não aguentava carregar consigo o fato da infância pra sempre encerrada. Não, a isso ele se negava. E ela, a mulher, talvez ainda mais aturdida que ele, ela que ficasse com seus tênis e cadarços e sorrisos.
Foi então que o menino, cobrindo de si a parte agora homem, máscula, deu-lhe as costas, tomou a bola novamente debaixo do braço e, resoluto, adulto, maduro, desceu novamente e pra nunca mais voltar os trinta e oito degraus que os separavam. Essa é a distância da primeira perda de todos nós, mais os vinte e seis passos, ou quinze, se estiver com pressa. Mas não, ele estava apenas apaixonado. E completamente perdido...

- música do post: "velha infância", Os tribalistas

27 comentários:

@JayWaider disse...

Oh Alex querido, eu fico aqui no desejo que tenhas força... eu sinceramente acredito que a presença do Alê em minha vida foi e continua sendo algo muito importante. As pessoas que nos veem juntos e sabem que somos, amigos-amantes, se surpreendem com nossa amizade, carinho e companheirismo. Quem nada imagina, sempre diz: poxa! a amizade de vocês é linda. Como podem ser tão amigos? E ouvir isso é muito bom. Do fundo de meu coração, eu desejo que cada um dos amigos que fiz aqui nesse blog pudesse experimentar um amor assim.

E eu mesmo aqui de longe te envio um carinhoso abraço e desejo que tudo caminhe para a sua felicidade... Eu e o Alê te abraçamos com carinho.
Bjus de nós dois....( e ele tá aqui do meu lado agora, dizendo que vc pode acreditar que tudo vai dar certo no final).

@JayWaider disse...

E sobre essa obra prima, que é esse post, quero dizer pouco pq tudo foi dito ali. As perdas em nossa vida meu querido, são inevitáveis. Do momento de nossa concepção ao suspiro final, tudo é perda, uma atrás da outra, na verdade permeada por ganhos... Nessas perdas inevitáveis vamos ganhando sinais que vão nos marcando pra sempre... o tempo é o responsável por nossas perdas todas. Podemos por acaso apagar ou deligar o tempo? Não. É, ele é esse vilão. O melhor mesmo é encontrar nele as respostas que ele nos revela sempre... afim de que nossas perdas possam, mesmo que não percebamos, serem positivas.
Bjus do Jason e do Alê.

R. disse...

Lembrei do meu primeiro grande relacionamento, da minha primeira namoradinha, ainda no jardim de infância. Chamava Rafaela, uma loirinha linda. E por ser menino, não homem, namorava, dividia lanche e etc, mas td escondido. Meninas eram o inimigo. Chatas, estridentes, frágeis. Éramos quase uns batutinhas. Imagino se ela ainda é loira e se ainda é linda e o que faz da vida. Desde o jardim de infância eu já devia saber: as mulheres hão de acabar comigo.

Abraço

Dani Pedroza disse...

"A liberdade de serem crianças dava-lhes a chance de infringirem, de certo modo, as barreiras que ainda não conheciam entre eles."

E quando deixou de ser criança tornou-se impossível infringir as "leis", ultrapassar as barreiras que havia entre eles. Afinal de contas, homem não chora na frente de uma mulher. Muito menos daquela que roubou-lhe a inocência de pensar que o amor não é uma cilada.

Ela o transformou em um homem. É isso. Não foi a natureza e o passar dos anos que o fez. Foi ela. Porque ser homem não é uma questão de tempo, ou de corpo. É uma questão de consciência, de descoberta, de se entender como tal. Uma dessas loucuras características de ser humano. A capacidade de raciocinar é mesmo uma faca de dois gumes. Pode ser extremamente libertador, mas, por vezes, é a grande mamorra. Há prisão maior que não seguir a natureza? Há prisão maior do que só poder considerar que uma coisa existe quando entendemos a coisa e não quando ela simplesmente passa a existir? É isso. Ele tornou-se homem naquele momento. Ela não. Embora a idade fosse a mesma, ela ainda não tinha consciência de ser mulher, ou já a tinha tido antes daquele momento. Então ela já era ou ainda haveria de ser mulher. E talvez seja justamente essa a maior traição da menina (mulher?), não estar vivendo o mesmo tempo que o dele. Como ela havia permitido que companheiros inseparáveis fossem distanciados por um abismo tão perigoso? Agora pra chegar até ela não bastaria subir os degraus, dar os passos, seria preciso se aventurar sobre o abismo. Ele poderia até descobrir que pode voar. Mas ele também poderia se esborrachar no chão.

O amor entre crianças é tão menos perigoso, tão confortável. Não faz a gente ter vontade de chorar. Não faz a gente se sentir tão inseguro, tão pequeno. Ué, mas ele acaba de se perceber homem. Não deveria se sentir forte, seguro? rs... rs... Eu acabo onde comecei, aliás vc começou...

"A liberdade de serem crianças dava-lhes a chance de infringirem, de certo modo, as barreiras que ainda não conheciam entre eles."

P.S.:Quanto ao meu post, minha intenção era mesmo falar sobre o quanto a idéia do amor às vezes é mais importante pras pessoas que o próprio amor. Eles provavelmente se amavam. Havia cumplicidade, companheirismo, desejo. Mas ela não respondeu a declaração de amor. E pra ele, naquele momento, estava tudo acabado porque ele já tinha duas idéias pré-concebidas: quem ama fala isso e só há amor onde houver reciprocidade. Então, se ela não respondeu é por que não o amava e se não o amava ele também não a poderia amar. Ele não pôde perceber que todas as expressões de amor estavam ali, ele precisava da palavra Amor, assim como precisava do cheiro de café mais do que do próprio café.

P.S.2: A cada dia gosto mais daqui. Bjs !!!

Marcela disse...

'A liberdade de serem crianças dava-lhes a chance de infringirem, de certo modo, as barreiras que ainda não conheciam entre eles.'

Saudade desses tempos, em que as complicações eram tão descomplicáveis.
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Bah, tu comentou lá no meu blog sobre o blue-ray, eu já tinha visto a propaganda em alguns trailers, daí depois de ler o teu coment fui pesquisar sobre o tal substituto do dvd! Sinceramente, pra mim, só vai substituir o dvd no dia em que eu tiver um bom salário, porque primeiro, tem que ter TV de plasma, e o preço discretíssimo do disquinho! minha nossa!

Pobreza detectada...

Abraços!

Rodrigues, K. disse...

Alex;

Não tenho recordações do tipo, de quando ainda era criança, talvez, poque fui uma menina timida, que gostava de brincar sozinha. Antipática não? rsrs.

Sua história me deu sede de ler mais, continuar lendo e lendo, de tanta continuidade que colocou nas linhas. Imaginei a cena todinha aqui na minha mente. E a menina? o que ocorreu com ela? Deve estar sentindo falta do amigo.

Beijooo.

Amanda Beatriz disse...

amei esse texto! as diferenças tão grandes de repente descobertas.
uma coisa meio machadiana!
beijos!

CátiaSofia disse...

Eu sou mesmo estranha, nunca sofri disso. Coisas da vida, nem sempre podemos ser todos iguais. Adorei o texto, quer dizer amei, escreves de uma maneira linda. Continua assim.
Beijo

Bill Falcão disse...

Como as coisas mudam de repente, né, Alex? E você construiu essa mudança de maneira magistral!
Lembra do que eu te falei meses atrás, quando você tava inseguro quanto a voltar a fazer bons posts?
Taí, o negócio é esse mesmo: ir escrevendo, desenvolvendo seu talento. A cada dia, ficas melhor!
Grande abraço!

A Torre Mágica | Pedro Antônio de Oliveira disse...

Grande Alex!

Que bom que gostou da caricatura! também achei muito legal!

Obrigado por comentar!

Sobre o seu texto, eu achei muuuito bonito (mas isso não é novidade!). :)

Ah... o primeiro amor. A gente nunca esquece, né!?

Abração bem forte! Até mais!

Pedro Antônio - A TORRE MÁGICA - www.atorremagica.blogspot.com

@JayWaider disse...

Ei sumido!!!
Tenhu sentido sua falta no meu blog. Espero que esteja tudo bem.
Estou te indicando ao prêmio Meme Stefhany hehehhe. Dá uma forcinha pra essa musa ae!!! kkkkk
Quero ver ela no seu blog tb kkkkk


Premiado!!!! Meme stefhany pra vc!!!
Espero que goste?!!! Dê uma força pra mocinha ai....KKKKKKKKK
Veja lá no meu blog.

Ademerson Novais disse...

Bem Alex vir aqui em teu blog é caminhar em fina camada de gelo...onde nunca se sabe o que esta lá embaixo...a sensação dos passos tocando a lamina fina é excitante...inebriante..cada passo...cada movimento nos faz temer algo que nem mesmo sabemos o que é...vc nos cativa com palavras dubias...com milhoes de significados que vá danado a uma unica palavra e em suma resume ela a apenas ao seu verdadeiro significado...fico muito feliz por seu talento...pela esse seu tamanho dom de nos prender as linhas....a seguir este teu compasso de deslumbramento...de perdição e encontro...parabens cara...


Ademerson Novais de Andrade

Filipe Garcia disse...

Muito bom o texto, Alex. A narrativa é impecável. Fácil foi visualizar toda a cena do conto.

Não estudei psicologia, nem entendo muito como essas coisas funcionam com criança, no geral. No entanto, acho que essa "descoberta" do outro, parte de si mesmo, quando você se "descobre" maduro e assusta com o próprio corpo. Daí advém o contato com o outro sexo e as comparações que antes não ocorriam.

Um abraço!

@JayWaider disse...

Meu querido Alex...
Tô mesmo preocupado com vc. Onde andas meu amigo??
Te deixamos um bju com carinho!
Jason e Alê

Identidades Fragmentadas disse...

Hey, missin yer posts, be back, dear

Jaya Magalhães disse...

Impossível seria comentar e não contar que teu texto me trouxe lembranças de minhas primeiras paixões infantis. Lembro de lágrimas atrás de óculos escuros, por não vê-lo. Lembro de páginas de diários rasgadas. Fotografias queimadas, mais lágrimas.

Não medi os passos, nem a distância, Alex. Mas não uso mais óculos escuros. As lágrimas secaram. E o diário escrevo no céu. Nem sempre poesia, mas com lucidez distante.

Obrigada pelo texto. Pela inspiração. Pela história.

E posso te acusar de algo? Você sumiu outra vez. Será que vai demorar como antes? Me avisa, pra acalmar o tum-tá desse coração bobo.

Muitos beijos, querido.

J. MD disse...

saudades dos comentarios atenciosos em meu blog. Como estás cara?

Sobre o post: incrível que uma história possa criar esse sentimento que aflora em mim todas as vezes que leio tuas historias. Parabéns!
abraços!
fica com Deus..

@JayWaider disse...

Oh saudade meu querido.
Onde andas?
Bju.
Dá notícias!

Filipe Garcia disse...

Não some de novo não, Alex.

Thiago disse...

é quando me pergunto, quantas vidas a gente tem? Boas lembranças me trouxe.

CátiaSofia disse...

Está tudo bem contigo, à muito que não te vejo por estes lados.

Dá noticias, beijo grande^^_

Stella disse...

Olá, meu carioca preferido!

Demorei anos-luz pra conseguir voltar a ler estes seus textos de tirar o fôlego.

Mas, enfim, e com uma satisfação enorme (e te agradecendo de coração todas as boas e maravilhosas energias que me mandas-te!), estou de volta - quase completamente sã - e feliz por encontrar suas palavras.

Descobri que cada perda que temos, seja a infância, a adolescência ou a juventude, que nos abandona ao dobrar de uma esquina, é também um ganho.
Quando o garoto perdeu as ilusões de uma bela infância, entrou num novo mundo - mais complexo, com certeza - mas onde ele iria aprender muito com o amor, amor diferente daquele de quando somos crianças, mas tão profundo quanto.

A vida é assim mesmo,, não?

São ganhos e perdas... E, no final, o balanço só pode ser medido a nosso favor pelos amigos, corações companheiros, que nunca, nunca se vão com o tempo... como você.

Um abraço carinhoso da mineirinha que detesta pão de queijo e adora amendoim!

Namastê, Alex ê!

Cristiano Contreiras disse...

Pura poesia, sensibilidade, toques literários que fazem de seu blog, íntimo, um belo trabalho!

virei sempre!

www.incensurados.blogspot.com
se quiser ler minhas poesias intimas...


www.apimentario.blogspot.com
este é pra todos.

Anônimo disse...

Tá louco, garoto? Você não pode simplesmente desaparecer.
É muito importante, pra mim, ler os teus textos.

Érica disse...

Saudades daqui

:)

Érica disse...

por onde anda vc?

Jaya Magalhães disse...

Me dê um sinal de que tá tudo bem.