18.5.09

a primeira perda

...aqueles trinta e oito degraus de madeira um pouco puída era a exata distância que os separava. Quer dizer, os trinta e oito degraus mais vinte e seis passos; quinze, estivesse com pressa. Não estava. E ele não precisava refazer a contagem, já a tinha feito inúmeras e mais incontáveis vezes. Coisa de criança, criança que era.
Conheciam-se desde que se entendiam por gente, e sim, eles entendiam-se por gente à idade de oito anos. Havia apenas um senão: não se tratavam de dois meninos ou duas meninas. Não podiam, igualmente, brincar de lutas ou bolas, como não podiam brincar com bonecas – eram as duas crianças um menino e uma menina nesse mundo de convenções e tabus. E por essa aparente incongruência ou incompatibilidade de um proclamado destino é que os dois, o menino e a menina, brincavam de tudo um pouco: tanto de lutas, como de bola ou com bonecas. A liberdade de serem crianças dava-lhes a chance de infringirem, de certo modo, as barreiras que ainda não conheciam entre eles.
No trigésimo oitavo degrau, a bola debaixo do braço, pelo rosto meio pálido do menino nada disso passava, e sim que faltavam apenas mais vinte e seis passos pra encontrá-la. Ele morava embaixo, e por isso o esforço que fazia pra galgar os dois andares que os separavam mais tarde poderia ser interpretado como gesto de cavalheirismo. No momento era apenas um ato típico infantil, o de um colega ir buscar o outro pra brincar.
Aproveitando-se da licença que tinha, com intimidade percorreu os cômodos até o quarto. Com a mesma intimidade abriu a porta, como tantas outras tantas vezes fizera. E só então aconteceu. Ainda sem roupa, a menina olhou-o sem espanto, ao contrário dele. Mais lívido do que normalmente era, o menino não conseguiu descrever de outro jeito a cena do que deixando a bola, antes debaixo de seu braço, rolar corredor afora. Antes desse momento fatídico eles eram iguais, porém a descoberta cavou um profundo abismo entre os dois. Talvez a menina não fosse tão inocente quanto o menino, ou o fosse muito mais do que ele, pois em nada modificou a atitude. Movida somente pelo automatismo cotidiano, colocou o short que costumava usar pra jogar bola, o blusão já meio manchado e sentou-se na cama pra colocar os tênis brancos encardidos. Perplexo, o menino simplesmente não cria na naturalidade da antiga companheira. E ela, com a mesma expressão mista de ingenuidade e complacência, olhava-o com certa curiosidade. Abriu um sorriso, exatamente o mesmo de antes, inclusive com o mesmo dente falhado como o de antes, mas o menino não viu assim. Era completamente diferente. As crianças não têm sexo uma pra outra, a não ser no momento em que se descobrem homem e mulher. E por mais ínfima que fosse tal descoberta, ou então abrupta, como talvez nesse caso, era definitiva. É a mudança primordial. É a primeira perda.
O menino de algum modo reconhecia isso naquele sorriso, não mais nem nunca mais o de sua companheira de antes, de lutas ou bonecas ou até bola, como a que estava parada, também perplexa, encostada na parede do corredor. O sorriso que o menino reconhecia era o de uma mulher. E sentia-se traído por isso, como se ludibriado durante todo o tempo que passaram juntos. Traidora, chegou a pensar, mas não mais, porque algo líquido, quente e salgado subia-lhe pela face até os olhos, junto a um rubor repentino. Não choraria na frente da menina. Não dela, a traidora. E tantas vezes havia chorado justamente em seus ombros, nos ombros dela, por um joelho ralado ou um galo qualquer. Mas agora tudo era diferente, e, se ele ainda não tinha consciência disso, sobrava-lhe apenas aquele sentimento sem-nome que apertava seu magro peito.
Um homem jamais chora na frente de uma mulher, era o que lhe haviam dito. E tudo aquilo que se acotovelava dentro dele querendo explodir, sair aos borbotões jorrando toda a indignação faiscando em seus olhos, tudo isso o menino engoliu junto com o choro. Não, e era definitivo: não daria esse gosto àquela mulher; ou a qualquer outra. Traído, subjugado em sua inocência então revelada virilidade, o menino, descobrindo-se homem, juntou o que lhe restava de brio e, negando àquela mulher um olhar último que fosse, ela que inquiria dele uma resposta à súbita revelação, masculinizou-se. Ela que se revelou toda Eva tornando-o Adão, ele que nunca quis ou sequer vislumbrou tal responsabilidade. Ele que não aceitava esse peso de culpa sobre seus ainda estreitos ombros frágeis, o menino-homem que ainda não aguentava carregar consigo o fato da infância pra sempre encerrada. Não, a isso ele se negava. E ela, a mulher, talvez ainda mais aturdida que ele, ela que ficasse com seus tênis e cadarços e sorrisos.
Foi então que o menino, cobrindo de si a parte agora homem, máscula, deu-lhe as costas, tomou a bola novamente debaixo do braço e, resoluto, adulto, maduro, desceu novamente e pra nunca mais voltar os trinta e oito degraus que os separavam. Essa é a distância da primeira perda de todos nós, mais os vinte e seis passos, ou quinze, se estiver com pressa. Mas não, ele estava apenas apaixonado. E completamente perdido...

- música do post: "velha infância", Os tribalistas

11.5.09

d berço

...aos dez anos, todos achavam graça quando ele, o menininho, saía ao jardim pra caçar formigas. E todo paramentado com suas calças compridas, camisinha cáqui, chapéu de caubói dado pelo padrasto, as galochas negras que usava nos dias chuvosos pro colégio e, claro, a pistolinha d’água, inseparáveis, os dois, pra tal determinada tarefa. Cenho franzido, bico de lábios vermelhíssimos concentrados, e lá ia ele, o menininho, exterminar a praga que atormentava a família e aterrava qualquer tentativa de piquenique.
Não era fácil, a missão: o menininho lutava ferozmente contra aqueles insetos tenazes de vida, porém minúsculos de força. Podia-se dizer que era covardia, mas as proporções de um fato modificam-se dadas as circunstâncias: que mal poderia haver numa criança brincando de matar formiguinhas no quintal de casa? Era aplaudido ao retornar, sujo nas canelas das calças e ainda mais imundas as mãos e a camisinha cáqui, então quase negra quanto as galochas. No entanto, o que mais chamava a atenção, e só eu percebia, era a expressão de felicidade no rosto do menininho, um regozijo tamanho que, bem observado, seria até o da satisfação de uma crueldade.
Aos vinte e cinco, já no curso de medicina, aprovado com louvor em primeiríssimo lugar, tinha como matéria preferida a anatomia, em cujas aulas sempre se destacava por ser o mais aplicado, assíduo e interessado. O rapaz adorava, sobretudo, os momentos em que estudavam os corpos abertos, os órgãos à mostra, as entranhas desnudas de gente, que, pra ele, representavam perfeitos instrumentos de fascinação. Comumente pedia horas-extras com os professores, pra que lhe explicassem ainda mais detalhadamente os pormenores da máquina humana, em companhia, claro, do laboratório e cadáveres tantas e outras tantas vezes remexidos, costurados e descosturados pelo próprio rapaz, que se formou cirurgião com todos os louvores que lhe poderiam ser conferidos.
Nas reuniões com os ex-colegas de curso, anos depois, ria-se histericamente ao lembrar dos desmaios, convulsões, confusões, azias e ânsias de vômito dos outros na presença dos corpos estudados. Talvez ninguém mais reparasse o brilho com que o rapaz encarava aqueles rostos sem vida, descoloridos e enegrecidos pelo gelo das câmaras, admirando a expressão pra sempre surpresa e imóvel, mesmo quando lhes abria o ventre sem a menor cerimônia, violando o que de mais íntimo se pode tocar noutra pessoa.
Talvez apenas eu tenha reparado na mania que adquiriu de dar nomes àqueles seres sem vida, tanto tempo passava com eles. Escrevia-os no verso das fotos que tirou escondido, a primeira vez apenas de brincadeira, das outras por obsessão, e as quais guardava numa caixinha de madeira no fundo da última gaveta de sua cômoda. Como lembranças, como prêmios, como peças de um extenso e macabro relicário daquelas feições petrificadas, pro rapaz tão corriqueiras e familiares.
Aos trinta e nove, o menininho, o rapaz, o competente profissional, que a essa altura já havia se tornado precocemente a maior promessa na área de cirurgia do país, foi encontrado diante dos pedaços de sua secretária, retalhada por ele, com perfeição e orgulho, terminando de beijar a boca defunta borrada de batom carmim...

- música do post: "bésame mucho", Maysa

2.5.09

olhos d gato

“Is all that we see or seen
But a dream within a dream?”
Edgar Allan Poe

...a noite silenciosa era o convite perfeito pra um perder-se por aí. Em plena insônia, via-me divagar entre as frestas da quase-loucura do sono negado por perturbações de alma cindida. A casinha no meio do campo guardava a paz funérea de um antigo cemitério. E eterna. E o saber imutável da situação revolvia o meu estômago de dores insuportáveis, dores que me falavam fundo de tristezas emolduradas pelo tempo. No limite de não poder mais calar os gritos que teimavam crescer em mim, reverberando como ecos dantescos por minhas entranhas, resolvi levantar-me e tomar um copo d’água. Assaltou-me o pensamento infantil de afogar as mágoas, quer fossem o que fossem. Nunca antes a distância pareceu tão grande. Nunca antes os passos tão lentos. A cabeça pendida lembrava-me a de um condenado à morte por algo horrível. Talvez mesmo me condenasse por algo horrível que jamais cometi. No entanto, continuava o tortuoso caminho, já que indulgência não se dá a si próprio, até que topei com a geladeira, destoando do momento. A geladeira, e não eu, que perfeitamente me inseria no contexto das sombras diversas, tão fantasmagóricas as coisas se tornam sem o desvelo da luz. Copo cheio, a água descia fácil e evaporando-se pelo meu interior, que secamente restava. Pela metade, chamou-me a atenção um vulto curioso vindo da janela entreaberta: um gato preto encarava-me com seus olhos verdes, profundos, misturando-se à grama do jardim e ao negrume da escuridão. Um gole ficou pelo meio, engasguei com vontade e, quando dei por mim, não de todo recuperado como tonto, outro gato, dessa vez pardo e de olhos igualmente verdes, também me encarava. Infinitos, os gatos detinham todo tempo do mundo, relativizando meu parco conhecimento assustado de copo escorrendo pela mão. Se meio cheio ou meio vazio, não importa: é questão de ponto de vista, somente. Só e já então entregue ao momento, o arranhão do gole abortado abafou os rasgos das unhas ávidas pelo meu corpo metade desnudo. A última coisa que vi foram aqueles pares de olhos, verdes, vítreos, hipnotizando-me de um sossego eterno. No dia seguinte, os cacos continuavam no chão...

- música do post: "one day i'll fly away", Nicole Kidman

25.4.09

num momento d dcisaum

...ao atravessar de um lado pro outro em meio à madrugada de uma rua deserta, teve de tomar cuidado pra não tropeçar e cair em cheio na poça. Havia chovido bastante durante toda a noite, mas não reparara. E nem poderia. A mesa que costumava ser sua naquele restaurante numa outra rua menos deserta ficava virada pra parede, negando-lhe a possibilidade do presente. Não que isso o incomodasse, pelo contrário.
As fotos antigas penduradas em velhas molduras traziam-lhe a nostalgia do que não volta mais, e não voltar mais era exatamente do que precisava, se bem que sempre na décima terceira dose percebia que não funcionava dessa forma, mas aí já era tarde demais. Se lembrar das coisas não doesse, o que seriam então aquelas inúmeras ressacas em tantos dias seguintes que na verdade eram o mesmo interminável inferno? Fora abandonado, e teria de lidar com isso uma hora ou outra. Atravessando as ruas desertas em meio à solitária madrugada de rumo incerto, sentia como se o fizesse pela última vez.
O apartamento minúsculo onde morava a cada dia mais se transformava numa lixeira de lembranças. Não suportava permanecer ali. Por outro lado, não aguentaria se desfazer daquilo que o impedia de esquecer o restante. Riu-se da ideia, e por um átimo pareceu que uma fagulha de alegria iluminava o ambiente carregado. Foi só por um instante, mas podia-se vislumbrar que até o próprio apartamento vibrava na expectativa de dias melhores. O riso, que era histérico e alucinado, desfez-se em careta sombria, mergulhando tudo, inclusive ele, nessa atmosfera esquizofrênica que cheira à fumaça de cigarro barato. Riu-se de novo e de repente, percebendo que, sendo aquilo uma lixeira, ele mesmo era parte do lixo. O que não deixava de ser verdade. Desde que ali ficara sozinho, realmente tornara-se pedaço de coisa alguma.
Como se driblando a morosidade do corpo em torpor pelo excesso de álcool, levantou-se o homem e, enganando os próprios pés com passos lépidos e certeiros, como a faca que buscaria, cortou o ar até a cozinha. Procurou em todas as gavetas, não encontrou, até lembrar-se de ter vendido todos os talheres e também tudo o mais que podia ser vendido dali. Precisava de dinheiro, estava desempregado desde que... desde que estava só.
Talvez só lhe restassem pouquíssimas alternativas. Por isso, num momento de decisão, correu atropelando-se em direção ao banheiro. Não havia mais espelho, não queria ter o desprazer de se olhar desse jeito, esmorecendo aos olhos de todos. Como um homem pode chegar ao fundo de si mesmo? O processo ele desconhecia, mas o resultado gritava como queimadura encarnada na pele.
Pegou a gilete. A lâmina cega não chegou nem a arranhar as profundas cicatrizes da última tentativa. Desesperado, o homem ainda pensou em atirar-se janela afora. No entanto, da outra vez conseguiu apenas estilhaçar ambas as pernas. Parecia condenado à sua própria subsistência, a uma vida marginal oscilando entre a morte e o vegetar, o vegetar e a morte – e o estar sempre bêbado. Era a sua estratégia que pensava ser só sua, segredo de si pra si. Mal sabia ele quantos sentiam pena daquela condição. Fazer o quê? Ele era um homem sem função alguma. O pragmatismo que lhe exigiam: não, jamais. Um homem como ele não viveria por muito tempo assim, ferido de morte. Fosse bicho, talvez já lhe tivessem sacrificado, mas a crueldade humana preferia que restasse assim, morto-vivo, pra tomá-lo como exemplo do fracasso, de uma falha a não ser repetida. O sofrimento alheio é, antes de qualquer coisa, combustível de nossas ambições.
Porém o homem não pensava nisso. Aquele ser de interior destruído e destituído de si queria apenas ter o direito de morrer. Até que ponto não se pode decidir sobre o que se tem de mais essencial, como a capacidade de acordar a cada dia sob o peso de nossa carne? E a carne do homem lhe pesava, e apodrecia, mesmo que ainda aparentemente intacta. O homem era uma putrefação em plena existência, jogado às traças de recordações espalhadas pela sala escura e sonolenta. Aquelas cartas, ele já as lera milhares de vezes, até a última, que nada nunca lhe esclarecia, pelo contrário, tornava-o ainda mais canhestro dentro de si e de suas olheiras pisadas.
Nem mesmo eu sei o que aconteceu ao homem e estou quase certo de que ele também não sabe. Mas não importa, porque não se sofre à toa, apesar de que a mais ínfima das desconfianças pode levar um homem como aquele, ou talvez apenas qualquer outra pessoa, ao limite de se transpor a si mesmo. E não há volta...

- música do post: "it's a heartache", Bonnie Tyler

18.4.09

...se eu te pedir pra dar o fora da minha vida, por favor, meu bem, não hesite e vá logo embora. Que eu nunca te prometi nada, nunca disse que te amava e nem as nossas transas são assim tão boas. Se eu te pedir pra nunca mais me procurar – nem mesmo quando a saudade apertar fundo no teu peito, porque sim, sei que cê sentirá a minha falta –, por favor, meu bem, jamais me telefone, esqueça que eu existo e vá caçar outro amor pra te curar as feridas que vou te deixar (e sim, sei que vou te deixar as marcas mais profundas). Que cê foi sempre assim, frágil, com essa cara pálida de sardas que parecem desmaiar contigo. Contigo eu sei apenas que uma hora não vou querer mais nada. É o meu jeito de ser, não me leve a mal, apesar de achar que, chegado o momento, cê é capaz de sentir ódio de mim. Passional. Teu coração é que manda em ti e sempre te avisei “olha que qualquer dia vai dar merda”. Já tá sentindo o cheiro? Talvez não. Eu sim. Que nunca disse que ia te aturar pro restante da minha vida, das nossas vidas, da tua vida que cê fez toda questão de resumir à minha, e aí nós dois nesse círculo vicioso de que pretendo me livrar algum dia. Mas as crises serão tuas, todas tuas, que eu não sofro de abstinência de ninguém. Nem de amor, que consigo a hora que bem quero, pelo tempo que quero, de quem eu quiser. Assim como consegui e ainda consigo de ti. Se eu te pedir pra nem me cumprimentar na rua quando me vir, se me vir novamente depois de..., o que espero que nunca aconteça, por favor, meu bem, somente finja que sou um estranho pra ti, mesmo sabendo que sempre serei tudo pra ti, mesmo que isso te faça querer implorar pra que eu reconsidere. Isso nunca vai acontecer, se eu te pedir que saia por aquela porta que pintamos de amarelo-ovo juntos no nosso primeiro aniversário. Que eu não aguento mais tuas manias, teus cuidados e teus sorrisos. Nem mesmo o teu perfume nem teus ciúmes forçados, só pra mostrar que ainda me ama, que se importa comigo. Se eu te pedir que não se importe mais comigo, que não goste mais de mim, por favor, meu bem, não discuta, não teime, apenas vá, com tuas trouxas debaixo dos braços abraçados por mim tantas e tantas vezes. Vá por aquela porta que pintamos juntos e jamais regresse. Não toque a campainha que não vou te atender. Sei teu jeito até de apertar a campainha, teu jeito de falar, teu jeito de andar. Sei exatamente teu jeito de ser você como talvez cê nem saiba que eu sei. Mas eu sei, pode crer. E sei também que não adianta te pedir, como das outras vezes, que não tenha pena de mim. Depois do que houve, que cê não tenha pena de mim. Adivinho nos teus gestos, vejo nos teus olhos, escuto da tua boca, descubro pelo teu sexo... Não é culpa tua, talvez seja mesmo algo natural de se sentir. Mas eu não admito. Me dei conta de que o orgulho é bem maior que qualquer coisa que sinto por ti, ou então é só o medo de que no futuro não me reste nada por ti a não ser orgulho de mim e de que por mim não te reste coisa alguma senão pena. Por isso prefiro te ofender – dedo em riste – e te dizer as verdades que em outro momento poderia atenuar, é por isso que quero que cê simplesmente me deteste com todas as tuas forças e também por isso te imploro que, se eu me arrepender do que te escrevo agora, se mesmo a atitude que resolvi tomar – porque sou covarde, eu sei, mas por trás de todo grande orgulho há uma grande covardia, uma vez cê me disse e te dou razão – não fizer com que eu tenha, enfim, sossego (e eu não suporto mais), ou sinta o alívio que nada me proporcionou, nem mesmo você, por favor, meu bem, mesmo assim, mesmo depois de tudo isso, mesmo que seja por amor, esse corpo estranho que verdadeiramente nunca conheci, meu bem, por favor, não tente me salvar...

- música do post: "fim de caso", Maysa

11.4.09

soh, + 1 prece

...levantou-se como se partisse. Era noite e no meio da escuridão topou com algo que era si-mesmo através do pé na quina de algo duro, de madeira, de algum material que matéria era mais do que ele. Percebia-se vagamente, a não ser no ponto lancinante onde uma dor doía fino e consistente, como quando se tem algo preso na garganta – mas que não pode ser dito: não, não se pode dizer a coisa que fica presa à garganta: há o perigo de revelar-se.
A cabeça girava, uma leve tontura mansa. Hipnotizado num estado de semiconsciência – ou quase-sono, ou sonho, ou despertar ou qualquer outro desses estados em que não se é possível abrir os olhos e simplesmente ver – um cheiro verde penetrou-lhe nariz e corpo e entranhas adentro, o estômago se retorceu e os últimos restos podres de um jantar mal-sucedido (“Boa noite”, e então a porta fechou deixando-o pálido e incongruente do lado de cá, que é sempre o de fora. Sequer um sorriso.) vieram à tona como a náusea que de súbito o fez agarrar-se à porta, temendo que fosse agora, que fosse a hora, não de ficar, nunca era, mas de ir embora. Não, de novo não.
Numa dessas o dedo escorregou. A luz acendeu, clareando ainda mais de branco os azulejos, que refletiam nele a sua própria palidez, mas também e sobretudo a simetria que lhe era jogada na cara numa falta que não, jamais poderia reverter. Cumprir a pena parecia ser a única saída, pois se antes já havia tentado todas. Ele era justamente aquilo que não poderia ser.
Os olhos já acostumados à luz, viu-se então ao espelho. E como bicho selvagem não se reconheceu. Via o seu rosto, a sua carne, os seus pêlos descendo do peito até mais embaixo, até o ponto onde o tecido azul-claro da cueca escondia a sua alcunha de macho. Mas se não era ele mesmo, quem seria? E a pergunta fatal criou um hiato naquela noite. Os azulejos brancos e pálidos e simétricos sem graça encolheram-se todos envergonhados em seu hermetismo maquinal cuja luz engolida por uma possibilidade súbita de interrupção também mantinha-se imóvel. Chegaram todos ao ponto nevrálgico da coisa: ele questionou-se quando nunca o poderia ter feito. Pois num hiato pode-se perder tudo: é melhor que não saibam de nada, ou, ainda melhor, que não se saiba, apenas. É perigoso tentar dizer, pois quanto mais se fala menos ao espelho se reconhece. Assim...

pro Gustavo, pela lembrança de Bethânia
e por me fazer enxergar a frustração...
PS: que usemos a Páscoa pra refletir...

- música do post: "vida", Maria Bethânia

4.4.09

náufragos d fuga

...de longe eu o podia avistar, a mesma posição de antes, sentado sozinho na beira da praia. Ali, onde é o limiar entre a precária concretude da areia molhada e as pequenas marolas salgadas, abraçava as pernas de encontro ao corpo, a cabeça apoiada nos joelhos – levemente pendida pro lado esquerdo –, e os olhos perdidos no horizonte. No que pensaria o rapaz, pergunto-me, enquanto continuo a observar-lhe os cabelos lisos revoltos pelo vento que assobia forte, único indício de som.
Nossa conversa é muda, minha e do rapaz. Comunicamo-nos como em torre de babel, cada qual com seu idioma, linguajares distantes, indo de encontro à arrebentação. Nem mesmo sei se de lá ele sabe que estou aqui, irrequieto, tentando contatos ininteligíveis. É fato que não o conheço, e talvez por isso qualquer coisa de pudor faça de meus passos âncoras que me impedem o movimento. Mas mesmo assim permaneço nesse jogo só meu, do qual as regras, tácitas, não parecem fazer o menor sentido.
De repente as coisas mudam, como mudam inerentemente todas as coisas do mundo. Nuvens espessas tomaram os céus, reivindicando um espaço cinza-plúmbeo cada vez mais delas. Choveria, muito em breve, porém o rapaz não se mexia, não se incomodava. Olhos tristes jogados ao mar, náufragos de fuga, transbordantes de súplicas que eu não compreendia. Seriam lágrimas aqueles dois brilhos secamente apagados pela ventania cada vez mais forte?
Finalmente abri a boca, queria chamá-lo, a maré subia rápido, em poucos minutos seria impossível permanecer ali, aqui. Nada disse, no entanto. Estranhamente havia me esquecido de como dizer, falar, sequer balbuciar qualquer ruído decodificável. Estático, o rapaz era envolto por marolas ondas que se transformavam em vagas, estrondando violência contra aquele ser desafiador no seu caminho.
As roupas encharcadas, o rapaz afundava no que agora não tinha mais limiar: era tudo água, mar, chuva, tempestade tropical. Eu também molhado, queria atingi-lo de qualquer modo, mas a indecisão fez com que minhas pernas ficassem presas na armadilha movediça que me tragava fundo. Sabia, então, que jamais conseguiria chegar ao rapaz, tirá-lo de sua inércia, mesmo que à força, e salvá-lo de si mesmo.
Lentamente, observei a progressão de sua desgraça, imóvel, irresoluto. O desespero revolvia meu estômago, enquanto o rapaz desaparecia sob aquele tapete salgado e furioso. Melancólico, não se importava, fazendo o que fosse para permanecer na mesma posição inicial, o rosto encharcado. O temporal agravou-se, e não o pude mais ver.
Quando dei por mim, encontrava-me novamente em meio à platitude da paisagem azulada, o sol brilhava forte, e as coisas todas ressoavam calmaria. Não sei quanto tempo se passou, mas a imagem dos cabelos do rapaz, boiando confusos sobre o corpo já submerso, entranhou-se-me na memória. Podia ter sido um sonho, disse, convulso, não reconhecendo minha própria voz...


para Jaya, que me fez encarar-me ao espelho
(novamente...)
- música do post: "you've got to hide your love", The Beatles

27.3.09

o kso da salada d frutas

...Elisa salivava à lembrança da salada de frutas feita pela mãe no dia anterior. Ainda podia sentir o sabor que adquiriam todas aquelas frutas juntas, aos pedaços, identidade perdida em prol do conjunto. Claro que nisso não pensava, criança que era. A repentina ideia que teve foi a de ir até a cozinha e pegar um pouco, só um pouco, assim, sem ninguém ver, pois a hora do almoço já se aproximava. Soubessem o que faria, certamente lhe negariam um tantinho que fosse a satisfação de seu desejo.
Ainda à porta, observou para ver se sombra havia, ou barulho qualquer, rumor de passos, sequer. Nada percebeu, o que aumentou a coragem e fez com que se adiantasse até o refrigerador. Pegou do grande vasilhame acrílico transparente, e, com destreza felina, removeu o papel-filme que protegia a sobremesa. Sentiu o aroma gostoso exalando e por pouco não se distraiu de todo, já que o que fazia era por debaixo das vistas. Tomou uma tigela da pia e tocou a enchê-la a colheradas do doce, ao que notou ser a ação por demais trabalhosa, terminando por comer do próprio vasilhame.
Satisfeita a gula, sobreveio a culpa – apesar de pequena no tamanho, frequentava Elisa a noção do pecado através das aulas para a primeira comunhão. Limpando a boca nas mangas do vestidinho rosado, tratou de esconder a colher, arma do crime, por dentro da roupa, e de repor o papel-filme, meio desajeitadamente, e o vasilhame no mesmo lugar de antes.
Só não contava Elisa que o destino, caprichoso como só os novelos mais enrolados podem ser, desfiou-lhe um súbito acontecimento: à hora do almoço, não se sabe se por nervosismo ou pela quantidade de açúcar consumido às pressas, teve desarranjo intestinal. Além disso, a arrumadeira, moça jovem e pronta para o serviço, ao varrer debaixo da cama da pequena, topou justamente com a colher que faltava no porta-talheres, motivo pelo qual se indispôs a patroa com a cozinheira. Tomada de formigas envoltas em um minúsculo pedaço de mamão murcho, veio à tona o que o silêncio de Elisa não ousou dizer.
Naquele dia não lhe contaram nada, pois que não faz bem angustiar os enfermos. No seguinte, contudo, já refeita, foi a própria mãe que lhe comunicou a descoberta e o castigo: a partir daquele dia e pelos próximos quinze, Elisa não deixaria a mesa do almoço ou jantar sem antes comer uma taça transbordando de salada de frutas, a fim de pagar perversamente pela travessura. Concordando os deuses com a decisão soberana da mãe de Elisa, a menina não passou mal do intestino um dia que fosse da sentença. Passado o prazo, Elisa continuou fazendo das suas e sendo castigada, porém nunca mais quis saber de salada de frutas...

- música do post: "ovelha negra", Rita Lee

21.3.09

cuba libre

...sobre a cama os comprimidos espalhados denunciavam o ato em seguida. Abriu a boca e engoliu logo cinco, ajudado pelo cuba que preparara com tanto cuidado. Dessa vez com coca-cola mesmo, pelo menos agora, nem que fosse só agora, tinha de fazer algo certo nessa vida. Outros seis foram sem esforço, goles grandes, rápidos, ávidos da certeza de antes, planejada com todos os detalhes aquarianos. Um leve torpor. Da bebida, talvez, mistura inexata ressoando a álcool em demasia. Nunca fora inteligente mesmo, nunca prestara pra química, e um riso histérico cuspiu metade de uma daquelas pequeninas rodelas cor-de-burro-quando-foge. Se até o burro foge, pensou. Química, também pensou, e ao riso misturou-se um choro profundo, calado de tantos anos de erosão interna. E nem eram tantos assim, mas pesavam como se fossem. Porque pesa, sabe, carregar essa coisa que vai curvando a gente a ponto de dobrar a coluna, de fazer com que a gente encare o chão como a única perspectiva possível. O chão ou isso, e olha pro copo vazio de cuba, daqueles enfeitados, de requeijão. O torpor aumenta. Pra empurrar o restante usa a vodca mesmo (rum tava caro demais), pura, e das boas, havia raspado do resto de suas economias o pouco praquilo: não se sabe se foi antes ou depois de tomar a penúltima partícula do que considerava ser a promessa própria de um happy ending possível, que o braço direito pendeu e o copo saiu rolando pelo tapete vagabundo da quitinete...

- música do post: "21st century kid", Jamie Cullum

15.3.09

1 tard qualquer

...na sacada, a caneca de chocolate quente fumegava em plena tarde fria. Ainda não havia se acostumado... muito doce, achava. Melhor do que ficar sem nada, no entanto. Café não podia mais, ordens médicas. A vida não podia mais, pensou, bestamente filosofando coisas sem sentido. Havia se prometido parar de fumar, promessa velha e difícil de cumprir. Afinal, em que muleta se apoiaria quando acontecesse de novo? E sempre acontecia. Acontecia porque era o tipo de pessoa que não consegue se controlar, engolir sapos e ficar de esguelha, esperando o momento ideal. Agir é tão difícil. Preferia ficar assim, na solidão de uma tarde qualquer, nem alegre nem triste, adivinhando formatos de nuvens e amontoando compromissos para outra hora.
O telefone tocou o dia inteiro e não atendeu. Fugia, não queria enfrentar qualquer mudança súbita de tom. Ao mesmo tempo, sabia que esse modo de ser não poderia durar indefinidamente. Por isso, ou por qualquer outra razão que agora não vem ao caso, tirou o gancho do aparelho quando o próprio ruído soava rouco pela insistência. Era daqueles velhos, tipo telebrás, indestrutível, disseram-lhe no brechó – e preto. Achou um charme esse ar meio espartano; e o preço também.
- E aí? Achei que tinha morrido. Liguei tantas vezes nesses últimos dias.
- Uhum...
- Queria saber como você tá. Por que não manda notícias? Cê sabe que me preocupo.
- Uhum... é, eu sei. Desculpa, né nada contigo não... Sou eu, é sempre comigo mesmo...
- A mesma estória. Sabe, tá difícil continuar assim. Parece que a gente não combina mais, que a gente não se entende. Acho que não custa nada cê me dar um pouco mais de atenção, poxa. Eu cuido de tudo pra você!
- Você não sabe o quanto me custa...
- O quê? O que que cê disse? Fala mais alto que eu não te escuto.
- Deixa pra lá, você nunca vai saber o quanto me custa...
- Ahn? Ninguém merece esse teu telefone velho, hein. Fala mais alto, pô! Alô? Alô? Cê ainda tá aí?
O clique talvez tenha sido a resposta mais curta e audível que poderia dar. Nem mesmo a voz saía como desejava. Não tinha mais forças para lidar com tudo aquilo. Os papéis sobre a mesa que pediam organização. Os poemas que tinha de organizar para a coletânea, as provas de outro trabalho... Todo mundo dizia que era normal, que era assim mesmo, “coisa de artista”, uma hora passa, e já não sabia há quantas horas esperava a solução mágica.
Aqueles versos, os versos que havia escrito e que nunca seriam publicados. A indecência do ser, um bom título, achou, mas a ideia acabou rejeitada de um jeito vago, enquanto sorvia os últimos goles do chocolate já frio. Sedimentando no fundo da caneca branca, atentou para dentro de si com a certeza de que o telefone tocaria tantas e tantas outras vezes, e de que a vida não valia a pena pela poesia. No vigésimo toque de semanas depois, esqueceram-se dos contratos e convenções, e enfim desconfiaram do óbvio...

- música do post: "lacho", Omara Portuondo

9.3.09

mariazinha

...Mariazinha nascera pra ser pobre: era feia e necessitada. Feia por ser necessitada, já que sempre lhe disseram que a necessidade é feia. Na verdade seria rude, pra dizer o mínimo, falar assim de Mariazinha. Porém aqui nada se inventa, muito pelo contrário: era assim mesmo que ela mesma se via.
Acordava cedo, trabalhadora que era. Pegava dois ônibus, uma linha de metrô e mais dez estações de trem, além de uma boa caminhada de meia-hora até o serviço: pesado, insalubre, interminável. Mas isso sou eu quem diz: Mariazinha não diz nem reclama de nada, nunca reclamou. Mariazinha nascera pra ser santa. Mas demora, então não. Porque ela tem mais o que fazer.
Mariazinha vivia sozinha. E diz-se “vivia” com toda a propriedade do termo, pois não tinha pai, mãe, irmãos ou marido. Pra falar a verdade, nem nunca namorado teve. Era religiosa. Ninguém sabia de sua história de vida. Aliás, mal sabiam que “vivia”. Quanto mais de sua história. Sozinha.
Mas num dia qualquer: Aconteceu. Descendo do segundo ônibus encaminhando-se para a estação de metrô apressada pra não perder o trem pra não ter de andar ainda mais rápido por causa do seu serviço pesado insalubre interminável de repente estancou: um carro veio em sua direção e ela não o vira. Quase foi atropelada. Coração a mil em poucos segundos. Ainda foi xingada pelo motorista. Palavras de baixo calão. Fez questão de não entendê-las. Mariazinha nascera pra ser pura. Finalmente o viu: de início não compreendeu – achou que era pecado; então não deu importância. Afinal, tinha de manter a sua pureza intacta.
Pegou-o. Estava sujo da lama da chuva do dia anterior. Nem precisou conferir até o final: estava premiado. Estava ela mesma premiada. O bilhete lhe conferia o ingresso a um mundo totalmente novo e desconhecido. Nem sabia o que fazer com tanto dinheiro. Sabia apenas que o possuía. Mariazinha possuía o bilhete que por sua vez a possuía. Primeiro namorado. Primeiro beijo. Primeiro orgasmo. Primeiro prazer. Primeiro. Gemeu baixinho com medo de assustar-se a si própria em seu novo território. Ela-mesma. Antes disso “vivia”. Agora vivia. Sem aspas. E lhe bastava, pois a liberdade foi tamanha que:
Correu como potro livre-leve-solto numa pradaria toda verde e plana e ininterrupta como seus cabelos-crina agora também soltos na felicidade fácil que brotara dela toda. De face corada chegou ao banco, o vestido de chita manchado do sangue de sua recém perdida virgindade. E então trocou aquele pedaço de papel enlameado de mundo e de pecado por um monte de papel ainda mais enlameado de mundo e de pecado, entrada livre que tinha agora entre Céu e Inferno. Aliás, podia ter dos dois se quisesse. E queria, caftina que se tornara em meio à sua própria mutação. Sentia-se plena, realizada, prostituída de bem e de mal. Era a vida, finalmente a vida. Mariazinha era mulher da vida.
Não voltou mais nunca mais ao barraco onde morava. Aliás, já nem mais se lembrava de que um dia ali morara. Também nunca mais dois ônibus uma linha de metrô e dez estações de trem além de uma boa caminhada de meia-hora até o serviço. Que serviço? Pesado insalubre interminável??? Never!!! Mariazinha agora fala inglês fluente através de seu tradutor, Robert Robertson, pois agora só compra onde se tenha de falar obrigatoriamente em inglês. Quanto ao resto? Bem, dois Mercedes na garagem e um motorista chamado Jean-Luc, além de adquirir uma linha de metrô e dez estações de trem. Só porque não tinha mais o que fazer com o seu tempo livre, livre que era. Mariazinha era mulher livre. Aliás, já nem era mais “Mariazinha”: chamava-se Little Mary, assim em inglês, assim em itálico, que era mais fashion. Contratou alguém até pra assinar o seu novo nome por ela, já que não sabia escrever nem em português. Ah, também era Róberti (como ela o chamava e sem sobrenome mesmo, que isso ela não acertava fosse como fosse) quem pronunciava o seu novo nome, porque assim era mais bonito... (mentira dela, que mal conseguia dizer 33 ao médico, quanto mais Little Mary).
Vocês podem notar que eu não tenho mais pena de Mariazinha (recuso-me a falar e/ou escrever o seu novo pseudonome novamente), se é que mesmo algum dia tive. Creio que é apenas mais uma de minhas personagens que saiu de prumo e perdi o controle. Talvez por tê-la criado tão ingênua e tê-la solto em tão mundo cão como o meu, o seu, o nosso, mas que não o dela. Se eu não tivesse posto aquele bilhete naquele lugar... E se eu não tivesse posto aquele bilhete naquele lugar? Besteira pensar nisso agora. Aconteceria do mesmo jeito. As coisas são como elas são. E cada um sabe de si. Ou pelo menos deveria. Senão quem? Ninguém.
É, Mariazinha não sabia de si e eu, que podia saber dela por ela não poder, não quis. Achei que seria melhor assim. Sem pai nem mãe nem irmãos nem marido. Nem namorado. Virgem que era de si-mesma para si-mesma e para tudo-nada. Mas então o bilhete. O ingresso que a levou para o mundo e a tirou definitivamente de mim. Enquanto aqui divago essas besteiras com vocês, Mariazinha se diverte em sua sábia ignorância de gente que tem todo o tempo do mundo nas mãos, que pode muito bem manipular a fortuna como bem quiser, desafiar Cronos, Zeus, a mitologia inteira e o diabo que te carregue!!! A mesma (ou talvez outra) que outro dia de manhã rezava dois padres-nossos e uma ave-maria tomando o cuidado de não errar que era pra dar sempre a mesma soma: três: trindade: em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém. Agora não, nunca mais. Olha lá, entupindo-se de chocolates da Bavária, caviar dinamarquês, vinho italiano, Chanel da cabeça aos pés, sex drugs & rock’n’roll, baby...
Não, chega, isso já foi longe demais. Mariazinha tem agora tradutores de árabe até o último dos dialetos que se fala nos confins do Zimbábue. Possui todas as riquezas e pobrezas do mundo inteiro, porém não é dona de nada. Nem de si-mesma. Muito menos de si-mesma e de tudo o que compra por falta de tempo porque esse ela já gastou todinho mas quer mais por falta de espaço que, aliás, também já é todo seu: mundo, Via-Láctea, o cosmos inteiro e aos pedaços: universo: Big Ben. Vácuo. Isso era o que era: vácuo. Mariazinha era puro vácuo.
Ah, quer saber, cansei-me dessa estória, até porque não mais me restou espaço pra nada. Pra falar a verdade, nessa estória tudo não me resta mais: Mariazinha possui. Qualquer coisa tem a marca do pecado enlameado num bilhete escondido numa sarjeta quando foi quase atropelada por um carro cujo dono lhe disse palavras de baixo calão. Agora ela entendia. Fazia questão. Uma vez que possuía tudo e nada.
Mariazinha nascera pra ser rica: era feia e necessitada. Necessitada por ser feia. Por dentro. E por fora também. Dizem que ela lembra muito a Marilyn Monroe. Concordo. Não se pode ter tudo, afinal de contas...


livremente inspirado em Macabéa, personagem de Clarice Lispector
- música do post: "lapinha", Elis Regina

3.3.09

pla metad das chances

...foi só quando percebeu que faltavam outros dois dentes da gengiva de baixo, mascando gosto de sangue pisado, que tomou a decisão de sair do meio da merda do cubículo onde estava, todo sujo, molambo trapo esfarrapado de si mesmo, cheiro de bicho doente, futum de desgraça no ar, desprezo dos outros - pelos outros -, acabou assim, vendido, calças arriadas, objeto quebrado, esparramado e suplicante de um pouco mais de ilusão, o que lhe resta até o próximo beco, até que o juízo, final, condescendente, lance-o de vez no abismo de seus piores pesadelos...

- música do post: "lover, you should've come over", Jamie Cullum

25.2.09

fim d festa

"As possibilidades de felicidade
são egoístas, meu amor"
Cazuza
...o bloco passava e o suor do ritmo levava as gentes, enquanto apenas ele, Pierrô, parecia perdido no meio da massa festiva, contraponto necessário à alegria indomada que invade as almas em fevereiro. Mês canhestro, menos dias mesmo quando bissexto – de lua, sempre desconfiada, pronta para dar o bote nos amantes distraídos. Pois ia o bloco, tarde caindo, esmaecendo de cores o horizonte fatigado da bagunça de todo o dia. Pierrô amolecido e uma lágrima rolando coração adentro, já que solidão não se engana com máscaras de plástico nem se cura com sorrisos forçados.
Já desistia de qualquer festejo, o Pierrô, certo de que tristeza não se dá a estripulias, quando, de repente, a Odalisca do outro lado da rua hipnotizou-o com olhos de sherazade, prometendo-lhe as mil e uma noites que todo coração deseja ao partir-se por amor desfeito. Acreditando nas promessas da súbita aparição, Pierrô largou-se à sorte que só uma paixão pode gerar, pulando e arrulhando como se a festa somente a partir daquele instante começasse.A Odalisca seguia em frente com seus passos sensuais, desbravando braços e pernas pelo caminho como fosse a própria cobra a abrir passagem para o Paraíso. Chegando a uma viela escura, puxou-o a Odalisca para junto de si, fazendo com que bebesse do néctar divino e adivinhasse suas curvas por debaixo da transparência que a fantasia deixava entrever. Pobre Pierrô que, tomado pelo susto das ilusões, esqueceu-se de que amor de carnaval acaba quando menos se espera, assim como chega a quarta-feira de cinzas no melhor da folia: antevendo a sensação do gozo, nem notou quando o canivete rasgou-lhe as entranhas de lado a lado, senão que a dor foi insuportável para sequer terminar o último beijo. A noite caía, o carnaval chegava ao fim e, com ele, a realidade que nada tem de carnavalesca, na qual as fantasias são ainda menos óbvias. Na carteira havia duzentos reais. O restante a Odalisca jogou na calçada, enquanto sorria, cúmplice, para a lua...
- música do post: "todo carnaval tem seu fim", Los hermanos

19.2.09

dsaniversário

...não é apenas uma questão de ficar mais velho. Apesar disso, não sei bem por que não gosto de comemorar aniversário. O meu, porque das festas dos outros gosto e muito. Quando vai se aproximando a data, quando já não restam tantas folhas a arrancar ou riscar no calendário, começo a ficar meio tenso, preocupado, inclusive me distraio das coisas que tenho de fazer. Ah, sim, é verdade, me esqueci de dizer: fiz aniversário por esses dias. Só não me peçam pra dizer o dia certinho, coisa e tals, pois que nem consigo. Melhor dizendo: não gosto mesmo (quanto a idade não tenho o menor problema. É só me perguntar, quem quiser saber... será que alguém gostaria de saber??? rs...). Sei lá, eu penso que todo mundo devia ter o direito de não curtir essas comemorações anuais da data do nascimento, assim como todo mundo deveria ter o mesmo direito de não curtir, também, carnaval, futebol e música sertaneja. Afinal de contas, tudo tem dois lados, não? Pois parece que, às vezes, não. Parece crime hediondo e inafiançável não querer celebrar o dia em que nossas mães nos puseram no mundo. Nada contra as mães, muito menos contra a minha, não me entendam mal; só estou aqui defendendo o meu ponto de vista, humilde, chata e insistentemente. Por isso gostaria de propor a todos que passam por esse mundo, da mesma forma como proponho todo ano aos meus amigos, que também tenham o direito ao "desaniversário". É, sei que não é uma ideia nova e muito menos criativa, no entanto, sempre falo sério quando trato disso. Se por algum motivo você também não curte festinhas de níver no seu níver – ou se simplesmente nesse ou naquele ano x, y ou z você não estiver afim de comemorar patavinas alguma –, defenda e exija o seu direito ao desaniversário. Pode até parecer uma negação besta, niilismo pós-moderno, que seja. Contudo, pra mim, é apenas uma questão de gosto. E gosto, como todos nós sabemos, não se discute, não é mesmo?...

- música do post: “the way we were”, Barbra Streisand

14.2.09

galak

...ela tinha de ir. Era a única certeza que possuía no momento – ou talvez em toda a vida. Alguns passos apenas e a calçada cinza à frente. Ela mesma toda cinza, necessidade de afirmação, como se o sol não estivesse ali, a seu dispor, mas ardente, a ardê-la toda. Cabeça aos pés, pele queimada, alma pálida. Nos olhos o vislumbrar do porvir. Excitação madura, ansiedade abafada. Tinha de manter a pose, o foco, afastar um cacho dos cabelos castanhos grudado no suor do rosto suado. Úmido. Lavado de sal. De sol. Ainda ardente, ainda mais. Porém o armazém ali na esquina. Logo logo lá estaria. Apertar o passo não, não precisa. Imprecisa tropeçou, trocando os pés. Quase foi ao chão; o poste perto, exato. Foi por pouco. Panfleto velho: cão desaparecido. Pensamentos fugazes. Não não. Enfoque. Distrações demais. Um segundo sequer é insuportável. Lá dentro pediu: ao mesmo velho de sempre, as mesmas moscas de sempre voejando, as mesmas coisas de sempre, sempre mesmas, sempre coisas, mesmas sempre, coisas sempre... Hein, aqui o dinheiro, fica com o troco. Distraída, saiu. O sol apagou. Apagada estava pra tudo, pra todos, antevendo sensações, qual falsa cigana, bruxa, morgana. Divertiu-se pensando nisso. Passou o pequeníssimo embrulho entre os dedos direitos da mão esquerda. Era a sua maçã envenenada, a sua poção, o elixir de suas angústias. O mundo parou de girar, chineses caíam do teto que não mais azul, mas cinza, tudo cinza, tudo pó. Só ela inteira; ela e o embrulho amarelo indo-embora nas mãos que também se iam com ela toda pra dentro de si mesma, pra um mesmo ponto, energia concentrada, solar lâmpada em formato de noz, apodrecendo de espera. O passo que deu explodiu tudo como o big ben, centelha divina, arranjo cretino que, interruptor, girou a chavinha do mundo que girou todo de novo feito carrossel doido de cavalos selvagens descontrolados potros violentos como o sol que arde. E nesse meio movimento ela se perde toda porque tudo todos foram e ela ficou sem saber por quê, apenas desejando imaginando suplicando a sensação quente derretida doce confortante do embrulho aberto. Olhos bem abertos. Não dela, mas dele. Tentando captar sua essência num sentimento qualquer de estudada satisfação, perscrutando de um gesto cotidiano a fugidia certeza que não mais possui – será que algum dia já a havia possuído? De qualquer forma a afirmação, ou pelo menos a possibilidade desta, ou daquela, ou nenhuma – que seja – se confirme.Mais um passo. Um único uno. Cadafalso. Sobressalto atrasado. Um momento apenas. Relógio atrasado, soluço abafado, choro engolido. Sem tempo pra dor. Cena de horror. Poesia romântica, escapando sempre. Gótica, pontiaguda, como facas de faquir penetrando a pela ardida da ardência do sol escorrendo rubra caudalosa no rio de sangue ensanguentando a cinza calçada, tornando-se rubra em si, saindo-se dela mesma, escoando toda bueiro afora. E o chocolate, branco, puro, imaculado, esmagado no chão. Cheiro doce de cacau queimado pela borracha do carrasco pneu, sorrindo-se de sua inanimada ignorância. E pra sempre a dúvida. A eterna dúvida. Pairando no ar, confundindo-se pura com as impurezas porcas no ar, desfazendo-se em sua própria incerteza de nunca ser. Dúvida...

- música do post: "quizás, quizás, quizás", Maysa

9.2.09

perto d 1 coraçaum selvagem

...acabei de ler recentemente o volume de correspondências de Clarice Lispector, organizado por Teresa Montero para a Rocco em 2002. O que mais me impressionou nesse livro não foram os contatos ilustres que se correspondiam com ela, tais como Lúcio Cardoso, Carlos Drummond de Andrade ou Fernando Sabino, só para ficar em uma pequena parcela de exemplos, e sim a inquietude infinita de alma dessa estrondosa mulher, cujas palavras transbordavam ao mesmo tempo de beleza e comunhão com uma certeza muito interior: a de que a vida não se faz de certezas. Além disso, fiquei alucinado pela “literatura” de suas cartas – muitas podiam perfeitamente se passar por contos ou crônicas, se assim a autora quisesse, o que me fez perceber que o estilo de Clarice era próprio de sua pessoa, ou seja, natural, sem realmente denotar, em minha singela opinião, qualquer traço de afetação romanesca. Tida por muitos como “hermética”, “misteriosa”, “complicada” etcetcetc & muito blábláblá, a dicção literária de Clarice parece ultrapassar tudo isso, pois que não dirigida a um público específico (a não ser pelas cartas, obviamente de cunho remetido...). O que quero dizer é que sinto uma invejinha boa de Clarice Lispector, de ter a sensação, lendo-a, seja através de correspondências ou de sua extensa obra, de estar próximo a um genuíno coração selvagem que não se conformou a uma existência mediana, e que buscou sempre expressar a vida em seus detalhes mais específicos – e por isso preciosos. Também fico com um sentimento de nostalgia do que nunca tive, por mais estranho que isso pareça: sinto falta dessa época em que as pessoas mandavam cartas umas para as outras, num tempo pré-histórico em que internet era mito e, tv, em preto-e-branco. A carta tem todo um charme, todo um tom intimista que a frieza de um e-mail não permite. Está bem, talvez eu esteja sendo um tanto rude com a modernidade, ou mesmo despeitado, mas a saudade satisfeita pela sensação do abrir um envelope devia ser única. E a atenção do manuscrito, pouco a pouco substituído pelo teclado, jamais pode ser esquecida. Para os que ainda resistem a esses argumentos, o principal: se cartas fossem assim tão obsoletas, para que então publicá-las? Ah sim: cadê os meus textos? Achei que podiam esperar mais uns cinco dias... Clarice Lispector merece todo esse post e a minha e vossa atenção...

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...reservei um momentinho nesse post para uma mensagem pra lá de especial: queria muito agradecer as palavras de apoio que venho recebendo desde a minha volta a esse mundo. Muito obrigado, o carinho de vocês é mesmo digno de todo agradecimento. E Jaya, querida, o seu efusivo comentário me deixou muito feliz, mesmo num dia em que eu não tava pra sorrisos... Beijo em todos...

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...outro “à parte”, mas igualmente merecido: faria 100 (!) anos hoje a nossa Pequena Notável. Digo “nossa” porque Carmen Miranda foi brasileira até o último cacho de bananas, e também é uma das mais admiradas e respeitadas artistas brasileiras de todos os tempos e assim o será pra sempre, espero eu. Ter nascido em Portugal foi um mero detalhe, mais um entre tantos na vida e carreira dessa outra grande mulher do nosso país, e de quem nos devemos orgulhar. Hoje tão em moda, a sandália plataforma foi invenção sua. Essa e outras tantas peças do acervo de Carmen estão em permanente exposição no Museu Carmen Miranda, que fica no Parque do Flamengo, em frente ao número 560, aqui no Rio. Vale a pena conferir...

- música do post: “reconvexo”, Maria Bethânia

4.2.09

fundo d gaveta

...tenho lido bastante ultimamente. E pra mim isso tem sido novidade. Andava meio enjoado e de mal com a literatura, qualquer que fosse. No momento tenho devorado o que me cai no colo, costurando um texto n’outro e com vontade de retomar os meus próprios, talvez mais como exercício de estilo do que realização literária, o que há muito não encontro. E por que tô aqui dizendo isso? Sei lá, mas me deu uma vontade assim enorme de desabafar hoje... Desculpem-me, verdade seja dita, já que de mentira já bastam as que a gente conta pra gente mesmo o tempo todo né não? De modo que, por isso, acho que posso me fazer um desafio: em breve voltarei a postar nesse mundo um texto ficcional, digo, ficcional no sentido “literário” mesmo da coisa. Bom, o quanto de literatura terá eu não sei. Entretanto, quero muito acreditar que pelo menos um tiquinho terá (nem que pra isso eu tenha de me enganar um pouquinho. Afinal de contas, pra que servem as exceções às regras, hein?). Agora sério: de fato é muito difícil estar assim há tanto tempo sem escrever. Acho que, pra quem escreve, isso é mais do que claro, compreensível quanto aquele soninho que dá depois que a gente almoça. Dá uma dor, vai subindo uma coisa que cresce por dentro da gente até o momento em que se força a regurgitar-se, do jeito que estiver, seja como for. E é justamente essa espécie de comichão que eu venho sentindo nos últimos dias. Essa espécie de “não-sei-o-quê” que vai remexendo tudo por dentro e exigindo, demandando um espaço todo seu e que eu finjo não notar. Não dá mais. E talvez eu saiba o porquê de tanto esconde-esconde: é que escrever é um ato egoísta, tão egoísta que chega a ser altruísta... É paradoxal, mas é isso: escrever é o ato egoísta mais altruísta que há. E isso porque ninguém quer ser lido pelas traças, ou seja: escrever direto pro fundo da gaveta. O produto da escrita é, per si, destinado ao outro, mas o escrever em si necessita de um não dar-se muito corajoso; por isso escrever é, também, um ato de extrema coragem. Coragem de se voltar as costas para os demais e encarar-se a si mesmo. Quem faz isso sabe o quanto dá medo, o quanto se sofre, o quanto verdadeiramente dói. E eu andei tão covarde e com medo de mim nesses últimos meses... Enfim, o desafio está feito, a cabeça erguida e o cursor piscando de ansiedade. O que virá? Ainda não sei, mas que não será lido pelas traças, ah, não será não...

- música do post: “tente outra vez”, Raul Seixas

30.1.09

plataum e o msn

...outro dia li uma mensagem pessoal no messenger de alguém que dizia mais ou menos o seguinte: “o amor é de verdade; as pessoas é que são mentira...”. Aparentemente profunda, a frase não deixa de ser uma vulgarização do conceito de amor platônico que, vamos combinar, cada vez mais tem sido confundido e mal-interpretado como uma modalidade de amor solitário, um tanto quanto egoísta. Nem me interessa ficar aqui discutindo tal ou qual foi a intenção da pessoa em usar essa frase, até porque ignoro se extraída de alguma letra de música da modinha (certamente que não literária, de tão pouca literatura...). Enfim, o que me chamou a atenção e atiçou a curiosidade vai por outro caminho: o fato de as pessoas, assim, de uma maneira geral, falarem e, vá lá, cantarem tanto sobre o amor, muitas vezes querendo dizer – ou mostrar – com isso, que se importam com o Amor. Assim, grandão, com letra capital, o que lhe confere ar muito sisudo e envolve considerações circunspectas tais que tolhem a maioria – e daí as frases feitas e as filosofias prontas de porta de banheiro de botequim... O que quero dizer com isso? Provavelmente nada demais. Não estou filosofando, nem talvez mesmo divagando, pois que pra filósofo não levo jeito e a divagação não assumiria certamente tons tão gramaticais... Seria uma crítica, se em última instância tivesse de classificar esse post. A quê? Bem, talvez à mania que toma conta dos corações e mentes quando se está sozinho. Diz-se de tudo, promete-se mundos e fundos, todos em faturas que não serão pagas terminado o mês (ou a crise existencial, o que ocorrer primeiro). Ao que parece, todos têm interesse apenas na satisfação pessoal de seus desejos. Amor Amor? Que nada... o negócio é mesmo aproveitar. E por aí emerge uma corruptela de Platão, bem simplificada, é claro: o que importa, na verdade, não é amar o outro ou mesmo as suas qualidades, tampouco o amor em si, e sim a saciedade de um impulso qualquer. Psicanálise? Se for, Freud certamente explica. E, tudo bem, pode ter sim uma boa pitada de despeito nisso tudo, mas que não se confunda com inveja, pois que eu também vivo nesse mundo de linhas tortas... Se é cada um por si agora, o que se há de fazer? Há mais coisas entre o céu e a terra do que supõe nossa vã filosofia. A citação, já em si truncada, daria pano proutro texto. No entanto, fico por aqui e o papo assim desvanecendo feito considerações metafísicas de segunda ordem...

PS: aff, mas que post metido...

- música do post: “saúde”, Rita Lee

25.1.09

shhhhhhhhhhhhhhh

...é o mesmo som que escuto quando a tv sai da sintonia e eu, preguiçoso, permaneço na cama olhando pros chuviscos incessantes e nervosos... assim como foi o mesmo som que você me fez pra que eu calasse a boca, eu que vivo reclamando das coisas e te fazendo cobranças sem sentido. Sim, porque se não há nada combinado, assinado e lacrado, não há nada que eu possa fazer (não é mesmo?). Nós dois sabemos. No entanto, sou eu quem perde o sono em madrugadas chuvosas e ruidosas – o volume sempre mais alto do que deveria; tenho de aprender a programar o sleep de uma vez por todas... E os textos que ando postando por aqui? Pura confusão, pura lavação de roupa suja, sentimentos puídos e neuroses requentadas. Há muito não posto nada ficcional (apesar de todos os textos o serem...), mas digo ficcional no sentido outro da coisa: aquele em que transmutamos as nossas dores em estórias, em poesia. É nesse sentido que falo... Não consigo, porém. Ando muito enferrujado pra isso, muito enrolado comigo mesmo, também. Tudo que tento me parece meio desarranjado, disforme, e acabo invariavelmente frustrado – como agora... - e jogando aqui essas confissões sem cabimento. Como sempre. Não me admira que esse mundo ande cada vez mais desértico (se eu mesmo ando assim...). A última noite, que era pra ser de festa, fiz com que se tornasse um pesadelo ambulante. Incrível como a gente consegue se machucar ainda mais justamente quando tentamos disfarçar as nossas feridas. Burrice a minha, fica tudo tão mais evidente... E explosivo. No fundo no fundo, eu sabia que não ia dar certo. Eu sabia que as coisas se complicariam. Nada é tão simples quanto parece (e deveria, na verdade...) ser. Acabo sempre no meio do caminho, entre versões antagônicas dos mesmos fatos. Ninguém parece se importar. Às vezes penso que realmente as pessoas têm se importado cada vez menos. Com tudo. Com todos. Mas eu não sou assim, não consigo. Sou de falar, de abrir o jogo, colocar as cartas na mesa. Talvez devesse aprender a blefar como os outros. Em vez disso, continuo me cortando na ponta da faca que insisto esmurrar. Tenho todo um infinito particular que ninguém quer. A verdade machuca, eu sei. Quanto mais (pretensamente) desenvolvida a raça humana se torna, mais dissimulada a face, até porque... shhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh!!! E dessa vez não foi a tv ou você. Foi mesmo a vizinha querendo dormir...

- música do post: “infinito particular”, Marisa Monte

21.1.09

e assim m livro d mim

...pelas madrugadas escrevo como quem quer a companhia da noite, da escuridão profunda, mergulhada no silêncio. Escrever é o modo mais sincero de escapar a mim mesmo, e isso faz lembrar-me aquela famosa frase de Clarice Lispector – e pensar que ela tinha razão, sempre teve. Tenho me angustiado bastante nos últimos dias, o que me tem feito muitas vezes sair por aí, por essa cidade que possui alcunha de maravilhosa. Olho-a bem, paro em uma esquina qualquer e penso, enquanto espero o sinal abrir pra mim: “mas, meu Deus, maravilhosa pelo quê?” Se ninguém cuida, se ninguém a quer bem, se ninguém faz outra coisa além de usurpá-la de sua pretensa “maravilha”...? Talvez por inveja, ou mesmo por vaidade excessiva, ninguém teve pena de ti, Rio. Rio de mais um janeiro monótono e quente de verão, de praias lotadas de sujeira, de ruas perigosas e epidemias (a mais grave de todas: falta de respeito). Rio de tão sem graça. Por isso é que hoje, no dia do teu padroeiro, transbordo-me de sinceridade contigo, rogando a quem quer que seja que olhe por ti. Eu? Mas eu ando tão fatigado... eu sei, desculpa esfarrapada. Sim, é. Estou cansado de muitas coisas, aliás, sempre cansado e sempre mais. Porém, dei um tempo nas minhas próprias ladainhas pra prestar atenção em ti, pra falar contigo e pra pedir que te tratem melhor. Quem sabe se escrevendo dessa maneira, sincero contigo e comigo, não consigamos algum efeito? Talvez mesmo que nos ouçam... É, talvez. Livro-me de mim, de meus pesos, e espero também livrar-te de algum em meio a esse caminho torto de palavras desconexas. De qualquer modo, não te aborreça: veja só, colocarei uma música alegre pra gente ouvir. Doce ilusão. Porém, toma esta canção como um beijo...

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PS: esse texto é referente a ontem, dia 20 de janeiro, não postado por razões técnicas...

- música do post: “menino do Rio”, Baby Consuelo

15.1.09

eu q aprenda a lvantar

“Se o amor correspondido já tem prazo de validade
determinado, o amor platônico tem prazo vencido”
Claudia Lage

...não, o título desse post não é apenas por causa da minissérie. Ultimamente já vinha pensando em Maysa e em como a sua história de vida esbarra na minha às vezes. Como as suas letras me falam coisas que há muito penso, e me respondem outras tantas de que gostaria muito de saber. Isso tudo me traz a sensação de que as pessoas vivem e morrem por um certo propósito, cumprindo determinadas missões aqui onde estamos. Não, não sou espírita ou mesmo sigo qualquer religião ou culto. Respeito a tudo e todos, suas crenças e/ou seus deuses. Não é isso. Mas tenho fé. Em quê? Não sei, sinceramente não sei. Porém, acho bom ter fé, crer que há alguma coisa além dos nossos sentidos, além da ciência, pralém das nossas expectativas e imaginações. Dá um conforto acreditar nessa força que nos envolve. Simplesmente acreditar, sem mais nem menos. Faz com que a gente se sinta menos só. Mesmo estando. Agora mesmo, olhando pela varanda, vejo a lua, cheia de si, meio dengosa apoiada em duas nuvens, como que se preparando para o seu show melancólico de hoje. Lua dos amantes. Lua dos poetas. Lua dos desesperados... Tantas funções, tantas inspirações. Por vezes penso que endeusamos demais esse simples satélite. Em outras, como agora, acho que tudo isso é necessário, em alguma medida. É bom nos iludirmos de vez em quando, pois impede que tal ilusão se transforme num motivo de vida. Tem gente que passa anos acorrentado a uma fantasia e se tortura feito Prometeu, voluntariamente. Eu desejo o ludibriar de um momento, apenas, momento que me faça realmente crer em algo longe das minhas vistas, em algo que me distraia os sentidos a ponto de me fazer acreditar que tudo não passou de um pesadelo, e que a tristeza possa ser somente um tema passageiro. Se meu mundo caiu...

- música do post: “o nosso amor a gente inventa”, Cazuza

10.1.09

a cada 1, seu inferno pssoal

...parece que uma tramóia dos astros se forma para que tudo se desarranje uma vez mais. Quando as coisas parecem estar no caminho certo, descarrilam feito aquela receita de bolo complicadíssima que só a vovozinha acredita que a Ana Maria sabe fazer. De qualquer jeito, ainda arrumo ânimo pra fazer piadinhas. Por quê? ah, porque o tempo passa, o tempo voa, e, por mais que a poupança do Bamerindus não esteja mais numa boa, nada é tão grave que não possa ser remediado (tá, eu sei que tô passando dos limites, misturando agora piadinhas sem graça e sem referência a frases da vovozinha...). Talvez eu esteja com sono. Talvez apenas confuso. Ou mesmo atordoado com os últimos acontecimentos. Que acontecimentos? Bom, na minha vida, nenhum, o que é algo angustiante pra quem há 4 dias espera um telefonema, um sinal de vida, uma nesga de voz de uma esperança que se esvai mais e mais a cada segundo. E também pelas pessoas à minha volta, que passam pelo mesmo dilema. Claro, há variações, sempre há, mas é como aquelas de adaptação de certos destinos finitos, do tipo Romeu e Julieta ter se transfigurado em West side story (e não me entendam mal, não é nada contra o sotaque latino forçado da Natalie Wood e eu até gosto de "Somewhere" na versão e voz da Barbra Streisand...), mas é algo à la Frankenstein, uma coisa que não se encaixa, composto de partes difusas e costuradas feito boneca de pano - só que essa Emília sai muda e sem sal... Bom, o que quero dizer é que, por ignorarmos aquela voz interna que todos temos (sim, admitam, todos temos), acabamos por nos enrolar nós mesmos no novelo que tecemos. Sabe aquela intuiçãozinha que você de vez em quando repele com um desdém de "ai, que bobagem!"??? Pois é, ela é a mesma que poderia te tirar de muitas roubadas nessa vida, pois, apesar de os neurônios estarem no cérebro, agimos com o coração, e, mesmo aprendendo nas primeiras aulas de ciência da escolinha que o coração não manda em nada, que é apenas uma bomba de sangue localizada do lado esquerdo da caixa toráxica (tá, isso a gente aprende um pouco mais tarde...), ainda nos deixamos guiar por ele. Por "isso". Por essa coisa que nos faz agir instintivamente, feito bichos, ignorando os sussurros desesperados de um raciocínio claro, objetivo, e que às vezes chega a berrar pra ti que vai dar merda, que você e só você vai sofrer ao final, que as coisas não acabam como nas novelas... Será? Não é possível... não dá pra acreditar que seja só isso, deve ter algo mais, alguma explicação divina, estratosférica ou mesmo extraterrestre. Fantástica, sobrenatural, quem sabe... Não posso, não podemos ser tão tolos, não é mesmo? Afinal de contas, deve ser como a vovozinha fala: a cada um, seu inferno pessoal. E que nos conformemos...

- música do post: "ouça", Maysa

5.1.09

reflexões bestas e/ou + 1 ano nvo

...só me dei conta disso quando cheguei em casa e fechei a porta por trás de mim. Depois do clique me deu aquela sensação de vazio, sabe, de quando a gente começa a achar que as coisas poderiam ter sido melhores, poderiam ter sido mais intensas... poderiam ter sido eternas. Mas aí eu penso "que-besteira-essa-coisa-de-as-coisas-serem-eternas", têm que durar até quando duram e pronto. E pronto. E ponto. Final? Nunca se sabe, não é mesmo? Bom, mas eu tinha me prometido não ficar assim por um bom tempo desde que... tsc, não tem importância, nada disso mais importa porque eu me conheço e sei que aconteceu de novo. Também, não podia ser diferente, tantas surpresas, tantas revelações súbitas, tantos comportamentos e mãos bobas que desvelaram carinhos e sentimentos (des)conhecidos de mim há muito tempo, logo aqueles que fiz questão de varrer pra debaixo do tapete mais escondido da sala, foram esses, esses mesmos os que voltaram assim de súbito, como que aproveitando o meu jeito desarmado de encarar a vida dos últimos dias. Então não resisti. Típico de época de virada de ano, coisa e tals? Sim, admito que sim, talvez... No entanto, algo mudou no reino da Dinamarca e o cheiro podre que sinto faço de conta que é faz-de-conta, tapo o nariz e sigo em frente; afinal, não dizem pra gente o tempo todo que é assim mesmo, que tem de arriscar, "ver qual é"? Pois é, eu sei, eu sei disso tudo, mas sou aquariano e essas coisas de levar as coisas meio assim meio assado não combinam muito comigo. Sou do tipo de pessoa que quando suspeita de algo lá está, no campo de investigação, colhendo pistas e descobrindo digitais. E essa enrolação toda é pra dizer algo que muito bem já deveria ou poderia ter dito muito antes, na primeira linha, usando apenas uma linha desse post. Mas aí não seria eu, esse ser que se acha muito simples e se mostra muito descomplicado à primeira vista mas que, de verdade, só se sabe a prestações. Todos devem ser assim, desconfio eu, mas nem todos admitem esse jeito de ser e de compreender que a vida é um pouquinho mais complexa do que ler até o capítulo dois... Mais um ano novo? Quem sabe seja apenas isso né... ou não, quem sabe eu admita de uma vez por todas que sim, tô gostando de alguém de novo. Tudo novo, de novo, e o frio na barriga aumenta... será que vou me dar mal... de novo?...

- música do post: "só hoje", Jota Quest